1971 - 1975
|
1971 - 1975
Estou há um mês na residência do YMCA,
em Manchester. Demasiado M e demasiado C para as
minha predilecções. Sentado na cama passeio os olhos pelo
exíguo quarto, decido mudar de poiso.
Antes rodo o carro que acabo de comprar, não quero que me deixe
mal na viagem a Lisboa, no Natal. Com alguns confrades, vou a
Liverpool à descoberta da catacumba que viu surgir os Beatles, a
York ver a catedral em dia de invernia, a Chester encarar o
passado, a Windermere olhar o lago, a Blackpool rir-me da praia.
Parando de pub em pub, na tentativa frustrada de entender o gozo
de um quartilho de ale amornada. Vou saboreando a Álbion, sabe-me
bem.
Guio até Portsmouth, navego para Bilbao onde chego horas depois,
com o despontar da alva. A mais longa epopeia marítima deste
conterrâneo de Magalhães. Chego a Lisboa, é noite outra vez,
revelo a surpresa de Natal, um felpudo casaco de pele de merino. A
surpresa exala um cheiro nauseabundo, é a vingança do ovino.
Fugimos ao odor descendo para o Algarve, encontramos a primavera
em Dezembro e medronhos em Monchique.
Regresso para refazer as malas. Mudo-me para o rés-do-chão do 55
da rua de Clyde. No mesmo rés-do-chão, está o D. e a respectiva
metade, que subtilmente abandonam o domicílio, sem cena de
despedida nem cheque que salde as proteladas rendas, para
compreensível perturbação da Mrs. M, viúva encarregada das
cobranças. Deixam de herança o único apartamento com duas
assoalhadas, que me apresso a ocupar. Para o quarto que deixo vago
apresentam-se duas donzelas, que suscitam expectativas goradas
nalguns quadrantes do território. No andar de cima vive H, o
tempo não é elástico, não sobra para aulas, há afazeres bem
melhores, regressa ao Uganda sem o cobiçado diploma, vai
consolar-se decerto nos regaços das quatro mães, tantas são as
esposas do polígamo progenitor. E o M. e a J., brandos
praticantes de bowling de galeria, para onde nos arrastam volta e
meia. Mr. P, serôdio e misterioso açambarcador dos equipamentos
comunais. E o MA, enfiado no capote que trouxe da marinha grega,
que lhe tapa o frio e lhe empresta o garbo com que procura
impressionar as jovens da vizinhança.
A Inglaterra revela-se desconcertante.
Vou ao correio levantar uma encomenda. Equipo-me com o passaporte,
o bilhete de identidade, a autorização de residência, a célula
de nascimento, as impressões digitais, a ficha dentária,
reacção instintiva de quem desconfia da própria existência
indocumentada. “Tenho papéis, logo existo", tem sido assim
desde pequenino. O empregado entrega-me a encomenda sem querer
saber do dossier, e inquirido explica: se o senhor não for quem
diz que é, aí as coisas complicam-se. Tem lógica! Por isso me
espanto.
Tem lógica que acreditem em mim; tem lógica que a burocracia se
resolva por correspondência; tem lógica que as coisas aconteçam
na hora anunciada, e não depois; tem lógica que o sujo seja
limpo; tem lógica que “70 milhas por hora” queira dizer “70
milhas por hora”; tem lógica que haja eleições de verdade. Não
tem lógica que protestantes e católicos se matem na Irlanda;
não tem lógica a colectiva carraspana de sexta-feira à noite;
não tem lógica que uma gravata amarela coexista com uma camisa
roxa; não tem lógica a densa atmosfera que asfixia os recintos
mais fechados de Manchester; não tem lógica a tensão que se
respira em dias de futebol. Mantenho
uma relação tensa com a gastronomia inglesa. É isenta de
lógica. Congemino um plano, aprendo a cozinhar. Adquiro
bibliografia, sigo lições da MJ e da mulher do LM, inicio-me na
açorda à Alentejana, herdo um canteiro de cominhos e outro de
poejos, graduo-me nos guisados, doutoro-me nas feijoadas, engordo.
Troco almoços e jantares com o MA, que apronta excelentes
moussakas e saladas de feta. Estou
na Europa, aproveito. Vou a Londres volta e meia, é um dos
centros do mundo, Manchester um arrabalde. Há lá amigos antigos,
o QA, o RP, o B. As proms, o Messias no Albert Hall, o Hair no
West End.
Passo o canal com a A, a M e o PK, que me visitam, vamos a
Cherburgo em dia de sol, não vejo os chapéus de chuva, descemos
a Paris para o primeiro encantamento, a Bruxelas para uma
desilusão que o tempo corrigirá. Meto-me
no carro, vou ali a Itália, o encontro é em Verona, não pode
haver sítio mais adequado, foi lá que o Bardo colocou os amores
de Romeu e da sua Julieta, somos menos? Não somos, mas dava-nos
jeito um percurso menos trágico. Subimos a Montreux, dali a
Paris, donde parte o avião. Em
seis meses redescubro, aprofundo e dou por findo o meu percurso
esotérico. Numa
noite, o mundo ameaça desmoronar, saio de carro para o carpir,
regresso lesto para o salvar. Salvo? ************* Caso-me
hoje e está o caso atrasado. Que é feito da pontualidade
britânica? pergunto com o arquear das sobrancelhas ao
conservador, que entra e sai do gabinete, olha para nós e não se
decide. Resolve-se por fim, pergunta pelos convidados, a ausência
deles é a causa da demora. Convidados? Não há. Espanta-se o
senhor com a originalidade, mas avança com os autos, faz os
gestos e os discursos, nós respondemos conforme, acompanha-nos à
porta para nos dar os parabéns e a certidão. A
Srª M arranjou-me nova casa em Chorlton, na rua da Santa Werburgh,
filha de Santa Ermenilda, neta de Santa Sexburgh. Família pia. O
apartamento é todo branco, tem tectos amansardados, quando entro
cheira a scones e a pão acabado de cozer, e às vezes a ânsias
de outras vidas, pressentidas. Polícias montados em cavalos
patrulham aos pares a rua da Santa. Os cavalos depositam os
resíduos do feno matinal no asfalto, a vizinhança, armada de
pás e vassouras, leva-os fumegantes, para fazer com eles
malmequeres e violetas. Na
garagem guardo o carro e as ferramentas de marceneiro, bricolo
para me desenfastiar dos campos de Galois. O
Z e a M vivem aqui ao lado, a comunidade de Altrincham um pouco
mais longe. O RP e a L vêm de Londres para conversas sem fim. A J
e o J passam durante um périplo europeu. Visitas num Natal, como
está muito prazer, ainda não nos conhecemos, mais uma
originalidade, vamos à baixa remirar as plainas, comer um t-bone
steak, beber uma cerveja. As
notícias da BBC servem-me de despertador. Hoje acordam-me com uma
revolta militar em Portugal, desconfio, já tinham dito o mesmo no
mês passado. O rádio portátil vai insinuando ao longo da manhã
que desta vez, é de vez. Os colegas do laboratório acercam-se de
mim, curiosos, o meu sorriso sossega-os, podem dar-me parabéns.
Mantenho o sorriso nos dias seguintes, enquanto se revela a
excentricidade de uma revolução de flores. É
Verão de 75, está na hora da partida. O carro está atafulhado,
a minha mãe, que veio passar connosco estes últimos e tristes
dias mancunianos, arranjou um canto no banco de trás. A A.
empina-se para facilitar a entrada, procura compensar com esse
gesto o volume e o peso do R que há seis meses lhe vem inchando o
ventre e o orgulho. |