1963 - 1971
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1963-1971 Respiro e transpiro em LM. Matriculo-me
no Técnico, a criação da Universidade em Moçambique perturba-me
a opção. Hesito entre o apelo meridional e a dúvida de entrar
numa universidade que ainda não abriu. Vence o apelo, sou sócio
fundador. Mudo-me para o Lourenço, como o GB chama à cidade. Novidade:
há colegas de calças, e colegas de saias. Exige aclimatação.
Aclimato-me com pouca destreza mas muita persistência. Regresso
a casa como habitante, depois de ter sido visita nos últimos oito
anos. Após ter tomado conta de mim tanto tempo, preciso de
reafirmar a minha autonomia. Reafirmo. Com todo o jeito e
afabilidade de que sou capaz. Continuo
a ler tudo o que me vem às mãos. Voo
no aeroclube até perceber que não ganho para alimentar esse gosto.
Lá se vai o brevet. O badmington é mais cansativo, mas também
mais económico. E traz-me de regresso a Lisboa, para um campeonato
universitário. Admiro-me ao descobrir que tenho saudades para
matar. O
Sr. S, desvenda-me os segredos da fotografia. Pura alquimia. Às
apalpadelas, porque por definição a câmara é escura, agarro num
rolo, passo-o para una roda espiralada, meto-o num cilindro
hermético, despejo-lhe banhos em cima, seco-o e corto-o em tiras,
ponho-o no ampliador, impressiono uma folha de papel que continua
branca, meto-a em tinas, e começa a surgir uma imagem mais forte do
que a realidade que fotografei. Faço economias, dou mais
explicações, compro uma Minolta SRT 101, com uma lente 1.2,
sinto-me dono de um Rolls-Royce. Dou
ainda mais explicações, vendo frágeis saberes de electrónica a
um serviço público, recebo mais um prémio na Universidade, compro
uma moto. Às outras autonomias junto a da locomoção. Noites
de estudo na garagem do Ga e em casa do ZM. Pândegas e rambóias,
as piadas constantes do C, a sede de cerveja, que o calor é muito,
as preocupações dos meus pais com essa sede. Carnavais, passagens
de ano, o grupo chinês, o GB e as manas e as amigas e os amigos. As
poucas noites de gravata na boite do Polana. As semanas acampado na
Inhaca, a dormir na praia, a caçar submarinamente, com um olho à
cata dos tubarões que gentilmente me ignoram, e não aparecem
nunca. As férias no Bilene (sempre a praia), outros acampamentos, outras caçadas. Sou
um habitante da África urbana. Não vejo um único animal selvagem,
nem agressivo nem amedrontado, nem indiferente. Devo ser o único
mortal que atravessa o Incomati de batelão e não vislumbra um
hipopótamo. As bestas assanhadas com que me defronto são os
mosquitos, que levam sangue e deixam paludismo. E uma carraça que
se aloja onde não deve, e me deixa vítima de misteriosa febre. Um
estágio no Norte, junto às margens do Zambeze, numa açucareira. A
África romântica, colonial. Surpresa: uma biblioteca onde encontro
e devoro um livro do Ouspenski. Um
desassossego crescente com a sociedade onde vivo. Que me trata bem,
mas que me parece incongruente. Que direito têm as visitas de
mandar na casa que as recebe? Há guerra, eu sei de que lado estou,
mas não estou tranquilo. Subo
a Avenida ..., dois jovens mais novos do que eu vão em algazarra
pelo passeio, um negro idoso afasta-se humildemente para o alcatrão
para lhes dar passagem. *****
***** É
1969, acabei o curso. Ontem estudante, hoje professor. Os meus
primeiros alunos são meus colegas, da mesma idade e das mesmas
amizades. Para
animar uma nova aparelhagem, redescrubo a música esquecida desde os
tempos do Gazulo, pelas mãos de Tchaikovski, Borodine, Smetana. Hoje
há um “rally paper” da Associação Académica. Contribuo para
a minha equipa com o carro e com a (pouca) perícia de condutor.
Não percebo a festa que faz o tipo que ficou em primeiro lugar, eu
é que ganho o primeiro prémio. A
minha mãe e a minha irmã em Portugal, o meu pai em Nampula, eu
sozinho com o primeiro prémio. Por isso, já não leio tudo o que
me vem parar à mão. Tenho mais usos para o tempo. Os
amigos vão-se casando. O C antes de todos nós, o RP por estes
dias. Folgo de os ver nessa faina, vou coçando a cabeça. Acabam
os anos sessenta, começam os setenta, ambos trepidantes. Todo o
mundo está a mudar. Todo não. LM não muda, está protegido dos
ventos pelas distâncias, a quilométrica e a cultural. Se
os anos setenta não vêm ter comigo, vou eu ter com eles. Parto
para Inglaterra, paro em Londres onde me deslumbro, antes de
continuar para Manchester, onde me instalo. Pouco depois, o primeiro
prémio dá-me razões para ir a Lisboa sempre que posso: muda-se
para lá.
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