Home Up 1945 1945 - 1955 1955 - 1963 1963 - 1971 1971 - 1975

1963 - 1971


 

 

 

 

 

 

 

 





 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 

 

1963-1971

Respiro e transpiro em LM.

Matriculo-me no Técnico, a criação da Universidade em Moçambique perturba-me a opção. Hesito entre o apelo meridional e a dúvida de entrar numa universidade que ainda não abriu. Vence o apelo, sou sócio fundador. Mudo-me para o Lourenço, como o GB chama à cidade.

Novidade: há colegas de calças, e colegas de saias. Exige aclimatação. Aclimato-me com pouca destreza mas muita persistência.

Regresso a casa como habitante, depois de ter sido visita nos últimos oito anos. Após ter tomado conta de mim tanto tempo, preciso de reafirmar a minha autonomia. Reafirmo. Com todo o jeito e afabilidade de que sou capaz.

Continuo a ler tudo o que me vem às mãos.

Voo no aeroclube até perceber que não ganho para alimentar esse gosto. Lá se vai o brevet. O badmington é mais cansativo, mas também mais económico. E traz-me de regresso a Lisboa, para um campeonato universitário. Admiro-me ao descobrir que tenho saudades para matar.

O Sr. S, desvenda-me os segredos da fotografia. Pura alquimia. Às apalpadelas, porque por definição a câmara é escura, agarro num rolo, passo-o para una roda espiralada, meto-o num cilindro hermético, despejo-lhe banhos em cima, seco-o e corto-o em tiras, ponho-o no ampliador, impressiono uma folha de papel que continua branca, meto-a em tinas, e começa a surgir uma imagem mais forte do que a realidade que fotografei. Faço economias, dou mais explicações, compro uma Minolta SRT 101, com uma lente 1.2, sinto-me dono de um Rolls-Royce.

Dou ainda mais explicações, vendo frágeis saberes de electrónica a um serviço público, recebo mais um prémio na Universidade, compro uma moto. Às outras autonomias junto a da locomoção.

Noites de estudo na garagem do Ga e em casa do ZM. Pândegas e rambóias, as piadas constantes do C, a sede de cerveja, que o calor é muito, as preocupações dos meus pais com essa sede. Carnavais, passagens de ano, o grupo chinês, o GB e as manas e as amigas e os amigos. As poucas noites de gravata na boite do Polana. As semanas acampado na Inhaca, a dormir na praia, a caçar submarinamente, com um olho à cata dos tubarões que gentilmente me ignoram, e não aparecem nunca. As férias no Bilene (sempre a praia), outros acampamentos,  outras caçadas.

Sou um habitante da África urbana. Não vejo um único animal selvagem, nem agressivo nem amedrontado, nem indiferente. Devo ser o único mortal que atravessa o Incomati de batelão e não vislumbra um hipopótamo. As bestas assanhadas com que me defronto são os mosquitos, que levam sangue e deixam paludismo. E uma carraça que se aloja onde não deve, e me deixa vítima de misteriosa febre.

Um estágio no Norte, junto às margens do Zambeze, numa açucareira. A África romântica, colonial. Surpresa: uma biblioteca onde encontro e devoro um livro do Ouspenski.

Um desassossego crescente com a sociedade onde vivo. Que me trata bem, mas que me parece incongruente. Que direito têm as visitas de mandar na casa que as recebe? Há guerra, eu sei de que lado estou, mas não estou tranquilo.

Subo a Avenida ..., dois jovens mais novos do que eu vão em algazarra pelo passeio, um negro idoso afasta-se humildemente para o alcatrão para lhes dar passagem.

*****     *****

É 1969, acabei o curso. Ontem estudante, hoje professor. Os meus primeiros alunos são meus colegas, da mesma idade e das mesmas amizades.

Para animar uma nova aparelhagem, redescrubo a música esquecida desde os tempos do Gazulo, pelas mãos de Tchaikovski, Borodine, Smetana.

Hoje há um “rally paper” da Associação Académica. Contribuo para a minha equipa com o carro e com a (pouca) perícia de condutor. Não percebo a festa que faz o tipo que ficou em primeiro lugar, eu é que ganho o primeiro prémio.

A minha mãe e a minha irmã em Portugal, o meu pai em Nampula, eu sozinho com o primeiro prémio. Por isso, já não leio tudo o que me vem parar à mão. Tenho mais usos para o tempo.

Os amigos vão-se casando. O C antes de todos nós, o RP por estes dias. Folgo de os ver nessa faina, vou coçando a cabeça.

Acabam os anos sessenta, começam os setenta, ambos trepidantes. Todo o mundo está a mudar. Todo não. LM não muda, está protegido dos ventos pelas distâncias, a quilométrica e a cultural.

Se os anos setenta não vêm ter comigo, vou eu ter com eles. Parto para Inglaterra, paro em Londres onde me deslumbro, antes de continuar para Manchester, onde me instalo. Pouco depois, o primeiro prémio dá-me razões para ir a Lisboa sempre que posso: muda-se para lá.

 

                        Topo