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1945 - 1955


 




 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1945-1955

Cresço em Tomar, onde fico até aos 10 anos. A primeira casa junto ao Rio, faz esquina com a Rua de Trás (Trás de quê? Da rua da frente, é claro); depois, o Olival e o tenebroso cemitério dos fogos-fátuos, nas traseiras da nova casa. Tardes de pinchos e conversas em cima dos barris de resina de pinheiro. Verões quentes, passeios ao Agroal e ao Açude da Fábrica, mergulhos no Nabão.

Mergulhos, mas só depois do Sr. Jacob me ensinar a nadar, como faz com a minha irmã, a Z., e com quase toda a miudagem da minha idade. Infalível abordagem pedagógica: um cinto atado a uma corda que passa por uma roldana presa a uma árvore sobranceira ao rio. No cinto entramos nós, na outra ponta da corda puxa o Sr. Jacob, que nos mantém pendurados, a esbracejar e a engolir pirolitos, até termos entendido o conceito e a prática da natação.

Ir ao Mouchão remar, e dominar a arte de puxar com um dos remos e empurrar com o outro, fazendo virar o barco de repente para inesperada e elegante atracação. A auto-aprendizagem da pesca à linha, com as suas duas mais importantes disciplinas: como encontrar os peixes e como desencontrar os fiscais na altura do defeso.

O Nabão no centro de tudo. Os miúdos de “além-da-ponte” são os “espanhóis”, as hostes inimigas. Nós, os heróicos Lusitanos, os que, segundo relata o nosso livro de história, ganharam todas as batalhas, salvo duas: uma, que foi empate; outra, perdida no deserto Marroquino, por traição ou distracção.

A Várzea Grande. Dominar a misteriosa arte do equilíbrio em duas rodas, nas bicicletas de aluguer do Truca. A primeira longa viagem, desde o lado da estação da CP até ao lado do Quartel-general, uns bons 200 metros sem desmoronar. Ainda por cima, nas barbas da Escola Primária.

No Verão, nos concertos de Domingo no Jardim, divido-me entre espinotear com os artistas da minha idade, e apreciar os artistas de verdade, orgulhosamente enfunado pelos solos de clarinete do meu pai. Estudo solfejo no livro do Freitas Gazulo, descubro a desafinação congénita, para desgosto meu e do meu progenitor, surpreendido.

Esmagado pela enormidade da Rua do ... (o que é que lhe aconteceu para ter mirrado tanto, e hoje me parecer uma viela de aldeia?), passo pelo Hospital a caminho da Cerca. Para chafurdar na areia do Parque Infantil, empurrar o baloiço até acima da horizontal, passar pela Charola na subida para o Convento de Cristo.

E o calor... No dia da Espiga vamos piquenicar ao campo, só se ouvem as cigarras e o respirar compassado do meu pai, que dormita. Eu próprio estou pesado, deixei de seguir com os olhos a minha mãe à cata de flores, ramos, espigas, e outras matérias-primas.

O calendário. O Natal, que a minha mãe encena a rigor, dando ao Pai do dito toda a noite para deixar as prendas que encontramos de manhã. O Carnaval, onde sou groom, cowboy, pirata. O aniversário, durante o qual sou a pessoa mais importante da casa. As férias, em Leiria, na praia da Vieira, em S. Martinho do Porto.

Às quartas-feiras tenho encontro marcado com o Mandrake, o Cisco Kid, o Príncipe Valente, o Dick Tracy, nas páginas do Mundo de Aventuras. Aprendo a ler na escola, aprendo a gostar de ler no MA. Depois, leio tudo o que me vem à mão. O Sr...., vende fazendas numa loja da Levada (ou perto), é tão magro e pálido que as orelhas são transparentes, a mulher dele é linda, mas o que importa mesmo é a quantidade de livros que tem em casa, e a liberalidade com que os empresta, a mim e à minha irmã.

Também há Inverno. O Nabão transborda. Numa das cheias, o Carlos cai ou atira-se ao rio, no encalço de uma bola, é salvo “in extremis”. Vou para a escola ao som compassado da água que embate no meu primeiro chapéu-de chuva, e pela primeira vez sinto-me só, e suficiente.

 

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