«Rien n'est ellipse, les signes restant toujours adéquats à ce qu'ils expriment.»
F. de Saussure, Cours de Linguistique générale
Neste capítulo, começa-se por uma breve perspectiva da
evolução do conceito de elipse (secção
1.1), da gramática clássica à Teoria da
Regência e da Ligação (TRL), e da maneira como a
TRL tem recuperado parte das intuições deixadas pelos
clássicos sobre a relação entre a língua
e o vazio, para definir o conceito de categoria vazia
(secção 1.2). Tentar-se-á depois sugerir que a
noção de elipse pode ser integrada no Princípio
da Categoria Vazia (ECP), embora seja de referir a sua especificidade
(secção 1.3).
A ideia de que o vazio pode ter uma
importância significativa é uma ideia recente no
domínio do saber. A evidência concreta de dados
mensuráveis e observáveis sempre foi considerada
prioritária. No conhecimento moderno, onde impera o
princípio de objectividade, considerar que podem existir dados
caracterizados pela sua própria ausência é no
mínimo contraditório e especulativo, e equivale a
introduzir um princípio de incerteza ou
indeterminação insustentáveis[1].
O próprio Pascal afirma convictamente que "a natureza tem
horror do vazio"[2].
Algumas áreas do conhecimento têm no entanto
desenvolvido a ideia de que, longe de ser insignificante, o vazio
pode criar sentido. Talvez em nenhum outro domínio como o das
ciências da linguagem essa ideia se tenha revelado tão
fecunda. A hipótese da existência de entidades
linguísticas desprovidas de forma, de elementos zero, ou
formas vazias, remonta aliás ao início da
própria análise das línguas. Os tratados
clássicos sobre a elipse, por exemplo, defendem um
princípio geral de economia, característico da
linguagem humana, bem visível no estilo vivo e rápido
(elíptico) dos grandes autores[3].
Se a diferença constatada entre as ideias a expressar e o
discurso produzido sempre mostrou aos gramáticos
clássicos que a língua fica aquém --não
diz tudo--, isso deve-se ao facto de ela conter entidades
linguísticas não expressas, mas relevantes, cuja
ausência permite acompanhar o ritmo das ideias[4]
--ou não cansar os ouvidos, como diz
Horácio.
Desde a sua origem, a gramática tem especulado sobre o
entendido e o subentendido, o dito e o não-dito, dando a
entender que existe uma forma linguística
imperceptível (Milner 1985) paralela à forma
expressa, e que essa forma imperceptível deve ser reconhecida
como um ser positivo, identificado por propriedades gramaticais
características. A natureza e a identificação
desses seres tem levantado uma série de questões
retórico-gramaticais às quais a gramática
clássica teve que responder e que explicam o espaço
amplo que dedica regularmente ao tema da elipse. A conclusão
é que os seres linguísticos imperceptíveis que
estão na origem da elipse e de fenómenos associados
--silepse, zeugma, etc--, embora não tenham propriedades
fonéticas, têm com certeza propriedades
gramaticais. [5]
A formalização rigorosa introduzida pela
gramática generativa permite "apertar o cerco" ao
imperceptível linguístico. A partir dela, vai-se
formalizar aquilo que não tem forma perceptível, dar
forma e conteúdo ao vazio. A ideia é que há uma
falha na percepção porque o vazio é
resultante de um fenómeno essencial, situado a montante
do nível perceptivo. A gramática generativa considera
que é possível postular a existência de
categorias linguísticas especiais, providas de papel
linguístico, mas desprovidas de matriz fonética. Essas
categorias vazias combinam as propriedades linguísticas
das categorias plenas com o vazio fonético.
A elipse é uma herança da gramática
clássica, pelo que, embora o espaço aqui reservado a
este tema seja limitado[6],
convém relembrar o que os clássicos vêem nele. O
termo é tão velho quanto a própria
gramática, o que mostra que a sua ligação
é primordial, provavelmente ligada às suas origens.
O que é uma elipse, na gramática clássica? O
termo tem duas acepções, uma geométrica e outra
propriamente linguística, ambas derivadas do latim
ellipsis trazido do grego elleipsis, que significa
falta. O sentido geométrico aparece no século
XVII, graças ao astrónomo Kepler, para designar um
círculo imperfeito --o da órbita dos planetas--, mas o
sentido gramatical está presente já no século
XVI, em especial na obra do gramático Espanhol Sanctius,
Minerva seu de causis linguae latinae. O que há de
comum entre estes dois sentidos é a ideia de
imperfeição, num caso de uma figura geométrica
provida de eixos de simetria desiguais, e no outro de uma frase
desprovida (de parte) da sua estrutura
canónica[7].
A tradição gramatical é unânime em
reconhecer a dificuldade em definir um termo paradoxalmente
tão usual, mas está de acordo em admitir que se trata
sempre de um desvio relativamente à oratio perfecta, de
uma construção por defeito[8],
face a uma construção legítima. Eis algumas
definições da elipse, tiradas de tratados de
gramática tradicional do Francês e do Português
:
(1 )
a. "Il est incontestable que dans un certain nombre de phrases
où manque un élément, le verbe par exemple, on
se trouve en présence de phrases incomplètes que
volontairement on a abrégées. Il y a alors ellipse, une
ellipse que l'esprit supplée."
Brunot (1936), p.18
b. "A la limite, le représentant peut disparaître; on a
alors affaire à l'ellipse, c'est-à-dire à
l'omission d'un terme qu'il serait aisé de suppléer,
grâce à la construction de la phrase."
Chevalier, Blanche-Benvéniste, Arrivé & Peytard
(1964) p.99
c. "l'ellipse est [...] l'omission d'un ou plusieurs mots que
requerrait la régularité de la construction
grammaticale, et que l'on considère comme faciles à
suppléer."
Grevisse (1986), p.169
d. "On appelle ellipse l'absence d'un ou plusieurs mots qui seraient
nécessaires pour la construction régulière de la
phrase. La véritable ellipse se réalise quand
l'auditeur ou le lecteur doivent chercher dans le contexte ou la
situation les éléments qui manquent et sans lesquels le
message serait incompréhensible. [...] Mais dans
d'autres cas, le message est clair et complet et il n'y a ellipse que
par comparaison avec la phrase que l'on considère comme
normale."´
Grevisse & Goosse (1988), p.68
e. "Ellipse he quando na oração falta alguma parte, que
necessariamente se deve supprir para ficar o sentido completo."
Pereira de Figueiredo (1816), p.2
f. "Elipse é a omissão de um termo que o contexto ou a
situação permitem facilmente suprir."
Cunha & Lindley Cintra (1984) , p.613
Comum a estas definições parece ser a
preocupação em definir a elipse pela falta ou
omissão de um elemento habitualmente presente
(1.b.c.f), elemento cuja ausência é caracterizada, por
um lado, por uma atitude premeditada ou ponderada por parte do autor
(1.a.d), e, por outro, pelo apelo à inteligência do
leitor para a resolver (1.e).
No seu sentido mais amplo, a elipse cobre uma variedade de dados cuja
heterogeneidade implica problemas metodológicos e
teóricos diferentes. O próprio termo elipse
é abstracto e genérico --cobre os fenómenos de
falta de elementos na oração em geral--, mas serve
também para designar exemplos concretos --em latim, a elipse
do nominativo, do genitivo, da preposição, etc. A
elipse é pois ao mesmo tempo um conceito e um conjunto de
ocorrências[10]:
todas as gramáticas clássicas que abordam a elipse
começam por explicar o que é, antes de dar exemplos sob
forma de provas tiradas dos "bons autores".
Tratando-se de ocorrências, a tradição gramatical
distingue entre duas classes dificilmente diferenciadas, a elipse
retórica e a elipse gramatical, sendo ambas ilustrativas da
sintaxe figurada, por oposição a um uso menos
nobre da língua, a sintaxe natural. Esta
distinção permite assim a elaboração de
um conjunto de sub-tipos, usados para classificar os
infindáveis tipos constatados: zeugma, silepse,
enálage, helenismo, hipérbato, etc.
[11]
Essa taxionomia complexa tem como finalidade tanto classificar e
categorizar os próprios elementos do discurso ao
distribuí-los por classes, como elaborar uma pedagogia da
língua e da análise de textos.
[12]
Assim, Rodrigues Maya (1790) começa por referir que "A Ellypse
he quando na Oração falta alguma parte, que deixa o seu
sentido incompleto", para depois salientar as "muitas sortes" de
elipses, constituindo a lista de exemplos anexos uma verdadeira
introdução à sintaxe latina.
O conceito genérico de elipse, por seu lado, deu origem
à ideia de que se trata de uma manifestação
linguística caracterizada pela unicidade --independentemente
da sua variedade retórica ou gramatical--, que pode ser
objecto de sistematização. Tanto a gramática
clássica --por exemplo Sanctius-- como a linguística
admitem que a elipse tem muito a dizer sobre a línguas em
geral e sobre a sua estrutura em particular.
[13]
Uma teoria da elipse implica sempre uma teoria
linguística. De modo geral, a elipse permite
postular a existência de uma estrutura racional na
língua, de uma ratio grammatices (Clerico 1983). A
racionalidade da elipse e o seu uso fortemente analógico
facilitam a construção da própria
gramática ao reduzir as excepções aparentes e
dar conta da organização da oração
independentemente dos seus avataras. Põe-se no entanto a
questão de saber se a diversidade manifestada por aquilo que
se designa por elipse pode ser reduzida a um só
fenómeno linguístico, e também se os mesmos
processos que descrevem outro tipo de fenómenos
linguísticos podem servir para descrever as elipses.
Comum às diversas versões do conceito de elipse parece
ser a sua função teleológica (Bartlett 1983). A
tradição gramatical sempre insistiu sobre essa
função: o principal papel da elipse consiste em (saber)
usar o código de modo económico, criando
condições de brevidade.[14]
Essa brevidade tem por finalidade melhorar a mensagem do ponto de
vista comunicativo, estético, estilístico, e até
afectivo[15].
Os fundamentos da elipse levam a um princípio de
economia, baseado tanto em critérios psicológicos
--unidade do discurso, expressão da
emoção[16],
rejeição de repetições deselegantes,
etc-- como em critérios linguísticos
--redundância contextual.
Como distinção básica fica pois a elipse como
conceito (substância) e como ocorrência (acidente). Neste
duplo sentido, a gramática clássica acaba por captar
todas as ocorrências possíveis de elipses nas
línguas, já que, na pior das hipóteses,
poderá sempre rotular de retórica uma forma
elíptica particularmente rebelde aos modelos canónicos
da oração. Não é o caso para os conceitos
linguísticos de categoria vazia e elipse, cuja validade, como
veremos, é muito restrita e está longe de poder dar
conta da infinita variedade dos fenómenos de
ocultação e apagamento das línguas naturais
--ver parágrafos 1.2 e 1.3. Em gramática generativa, a
elipse não pode, por consequência, ser tratada
senão de modo formal, limitando-a ao que é
classicamente designado como elipse gramatical --falta de um
constituinte.
Os clássicos desaconselham de maneira mais ou menos
unânime o uso sistemático das formas elípticas,
particularmente pelo risco de cair em frases de tal modo reduzidas
que se tornem ambíguas. A maioria dos gramáticos
clássicos insiste na prudência com que se deve
usar tal figura[17]
--em especial quando se trata de elipse gramatical--, face aos abusos
por vezes verificados. Os autores da "Grammaire Larousse", por
exemplo, referem as insanidades que por vezes os
gramáticos das Luzes formularam com base na
elipse[18].
Para medir a pertinência desse uso, a gramática
clássica prevê uma série de modelos prescritivos
capazes de avaliar e ordenar sob forma de escala de valores os
diversos tipos de elipses.
A ideia da existência de uma escala de opacidade da
elipse (Bartlett 1983), do transparente ao opaco, traduz esse cuidado
prescritivo. As elipses transparentes seriam aquelas nas quais o
termo elíptico tem uma distribuição
perfeitamente identificável, e comuta de maneira óbvia
com determinado elemento lexical. Esse tipo de
distribuição transparente entre elementos
alternadamente saturados e vazios corresponde grosso modo
à elipse gramatical e assemelha-se à
ocultação de um constituinte facilmente
suprível, como em construções comparativas ou
superlativas ("Ele é maior do que tu
[és]").
Existem no entanto elipses opacas, caracterizadas por uma
combinação de traços manifestos que assinalam
uma operação de ocultação, a
intuição de um vazio não localizado, como nas
frases sentidas como completas embora canonicamente deficientes,
orações ou construções
fragmentárias, par pergunta/resposta, etc, do tipo "Rua!",
"Parabéns!", "Quanto?". Neste segundo caso, a
tradição gramatical tende a falar de elipse
retórica[19].
Neste tipo de frases, existe opacidade na medida em que não
é explícita parte da sua estrutura: há falta do
sujeito, do verbo, ou até redução a uma simples
forma pronominal. Vejam-se os exemplos seguintes:
(20 )
a. Quem comeu o bolo que aqui estava ?
b. Eu não [=não comi o bolo que aqui
estava].
c. Eu!
Para a gramática clássica, qualquer elemento é
elipsável se puder ser sub-entendido pelo locutor, pelo que
elipse e não-elipse não passam afinal de variantes
estilísticas, caracterizando-se a elipse no quadro
clássico pela ideia de variação livre: a falta
de um elemento é resolvida no seu contexto, por
referência a material lexical, sendo as formas lexical e
elíptica equivalentes para o locutor. Esta noção
de variação livre encontra-se presente por exemplo em
Sanctius. Segundo Clerico (1983:49), a concepção da
elipse de Sanctius baseia-se na ideia de que o sentido permanece
idêntico entre a construção integral e a
construção elíptica. Não há
diferença de sentido entre forma elíptica e forma
lexical, há pelo contrário paralelismo entre as duas
--a quantidade de informação é a mesma--, e
existe portanto redundância no caso de a elipse ser
restituída. Sendo assim, a operação de
resolução da elipse é um pleonasmo.
Na medida em que o sub-entendido implica o escondido, o uso dos
termos oculto para referir a palavra objecto de elipse e
ocultação para designar a operação
correspondente, relaciona-se claramente com a
preocupação dos autores clássicos em calar o
óbvio e o não-dito. Acerca da elipse do nominativo, por
exemplo, Magalhães (1805:14) diz: "Não póde
haver Oração sem nominativo, e verbo; ou cada hum
destes esteja claro, ou occulto. Nominativo claro he quando
está posto na Oração; Nominativo occulto he
quando não está na Oração, mas se deve
entender: o mesmo se diz verbo claro, ou occulto." De facto, de que
serve expressar aquilo que é óbvio, para quê
cansar os ouvidos? Neste ponto, fica claro que o oculto
é sempre o evidente: só a evidência autoriza a
elipse. O oculto só não é ambíguo na
medida em que aquilo que é esperado é do domínio
da evidência e não precisa de ser mencionado. Pelo
contrário, o incerto nunca pode ser ocultado: só se
pode economizar aquilo que é manifesto.
[21]
No domínio da terminologia da elipse e da expressão do
sub-entendido, convém referir o conjunto de termos usados para
designar os vários aspectos do processo de
ocultação, como omissão,
subtracção, supressão,
apagamento, encurtamento, etc, e os verbos escolhidos
para descrever a sua clarificação: suprir,
restituir, reformular, etc. A escolha entre esse termos
parece depender do grau de ocultação ou de opacidade:
quanto mais claro for o processo de resolução
--é o caso das elipses gramaticais--, menos o contexto tem
importância. Assim, a supressão de um termo da
oração pode ser resolvida por uma
restituição correspondente a um elemento manifesto.
Segundo Soares Barbosa (1822), por exemplo, para quem esta figura
é uma maneira de regularizar aquilo que qualifica de
"syntaxe de regencia irregular", a elipse é uma figura "pela
qual se cala alguma palavra, ou palavras necessarias para a
integridade grammatical da frase, mas não para a sua
intelligencia"[22].
Distinguindo entre elipse por "Rasão" e elipse por "Uso",
Barbosa acrescenta que "[...] toda a elipse que não he
viciosa, anda sempre juncta com os supplementos, que ou a
Rasão, ou o Uso subministrão ao Espirito de quem ouve,
ou lê para completar o sentido." Crucialmente, Soares Barbosa
classifica como "ellipse que tem por fundamento a Rasão" uma
frase como:
(3 ) O caminho da verdade he o unico e simples; e o da falsidade he
vario e infinito
Acerca deste tipo de construção diz o autor que "tem a
rasão por fundamento todas as ellipses, que se supprem com
alguma palavra, declarada ja em alguma parte analoga da mesma
oração, ou periodo, e que não se repete nas
outras por causa de brevidade e por ser facil de entender." Soares
Barbosa conclui que "nestas e semelhantes ellipses a rasão
mesma e a analogia das orações entre si, mostrão
logo a palavra, que se lhes deve entender sem ser necessario repeti
la."
Quanto às "ellipses que tem por fundamento o uso", o autor
explica que "so são auctorizadas pelo uso de cada lingua", e
que "he preciso supprir de fóra as palavras, que
faltão." Para exemplificar, cita expressões como "os
(Homens) mortaes", "os (Homens) Christãos", "o (Poeta)
Camões", etc . Este tipo de elipse de uso parece típico
dos "abusos" apontados anteriormente.[24]