3.3.2.3.Legitimação e identificação de pro em [Dem+pro] e [Poss+pro]


Os constituintes em causa nestas construções são todos flexionados. Os demonstrativos e possessivos podem verificar por Concordância Especificador-Núcleo os traços associados ao núcleo Numº, o que explica que sejam, nas Línguas Românicas, flexionados. Uma vez que a estrutura interna do DP impõe também mecanismos de Concordância Núcleo-Núcleo entre Numº e os núcleos funcionais Dº, Demº e Possº, a morfologia do possessivo e do demonstrativo em Português e em Francês é sempre verificada.
Estes mecanismos de concordância podem servir de base para avaliar a identificação do nome vazio legitimado nas construções [Dem+pro] e [Poss+pro]. Vimos que, para Sleeman (1996), a identificação dos nomes nulos está ligada a um elemento com interpretação específica. A ocorrência de especificidade é considerada por esta autora como um mecanismo geral de identificação dos nomes vazios --ver parágrafo 2.5.2.2. A especificidade pode ser desencadeada entre outros por um elemento partitivo --é o caso na construção [Q+pro], como vimos--, por um determinante definido, ou por um DP sujeito. Como se viu no capítulo anterior, Sleeman assume que pro é legitimado pelo traço [+partitivo], que possessivos e demonstrativos podem considerados elementos partitivos, e que a identificação de pro consiste em associar o traço [+partitivo] a uma interpretação específica.

Para Kester (1996), a legitimação e a identificação dos nomes vazios pode ser atribuída à flexão adjectival. Nas línguas analisadas por esta autora, os dados indicam que determinadas flexões são realizadas para fins de legitimação e identificação de pro --caso de [-n] em Neerlandês-- e outras para identificar o conteúdo dos nomes vazios --caso de [-s] nas construções genitivas partitivas em Neerlandês --cf. quadro (50).
Assumo que, em [Dem+pro] e em [Poss+pro], a legitimação de pro é baseada numa relação de Concordância Especificador-Núcleo entre o especificador e pro, e deve ser distinguida da sua interpretação: se um elemento especificador legitima pro como um pronome vazio, um antecedente contextual, presumivelmente com determinados requisitos, deve fornecer-lhe conteúdo semântico. Penso que existe, nestas construções, uma relação entre flexão e identificação semântica de nomes nulos. Proponho, a seguir, que, nas línguas en análise, a interpretação específica no antecedente é um dos mecanismos de identificação dos nomes vazios, mas que outras estratégias existem. Mais precisamente, vou sugerir que, em Português e em Francês, a identificação de pro em [Dem+pro] e [Poss+pro] não está associada ao traço [+específico], mas a certos traços morfológicos.
Nas frases seguintes, os possessivos e demonstrativos que legitimam pro implicam um referente contextual; note-se que, embora pro seja sempre formalmente legitimado, a frase é ambígua quando o referente não é específico:

(77)
a. Que livros pretende levar? --Levo estes pro / ?? o outro pro
b. Jean a une voiture neuve, mais la mienne / *? la bleue pro a déjà dix ans


Do mesmo modo que os pronomes explícitos, os pronomes vazios também referem um nome no contexto, isto é, são constituintes referenciais. Na linha do modelo traçado por Lobeck (1995), haverá contudo que distinguir entre os pronomes plenamente referenciais, como pro sujeito nulo, e os pronomes elípticos, cuja identidade é determinada pelo referente do seu antecedente -- cf. parágrafo 2.3.1. Sendo um pronome vazio, pro deve ter um referente contextual, mas é de presumir que tal só é possível se o DP que contem pro tiver um significado específico, no sentido de que é ligado a um nome cuja existência foi anteriormente referida, ou é implícita pelo contexto situacional. O DP elíptico não pode em caso algum ter uma interpretação puramente existencial. Assumo que a interpretação específica, entendida como uma informação familiar no contexto, permite que o nome vazio seja associado a um nome semanticamente e sintacticamente equivalente no DP fornecido previamente pelo discurso ou pelo contexto. Faço no entanto a proposta que o constituinte que identifica a elipse do nome deve obedecer a uma regra de equivalência flexional. Essa equivalência, ilustrada a seguir, é verificada em (78a.b), mas não em (78c.d). Observe-se que, neste último caso, pro não é identificado presumivelmente porque a flexão de género do especificador esta não concorda com a do antecedente: esta é [-masc] , mas livros é [+masc]. A mesma conclusão, contudo, não pode ser aplicada à flexão de número (78b):

(78)
a. O João comprou os dois livros, mas a Maria já tinha lido este pro
b. Não gosto deste livro. Vou levar aqueles pro
c. * Gosto muito de livros antigos. Vou levar esta pro
d. * O João comprou os dois livros, mas a Maria já tinha lido esta pro
e. * Não gosto destes livros. Vou levar a minha pro


A possibilidade de o nome ser suprimido em [Dem+pro] está pois aparentemente relacionada com imperativos de concordância em [+género]. Estas considerações podem ser relacionadas com algumas das propostas sobre a elipse do nome apresentadas no capítulo 2 por Kester (1996). Esta autora admite que, em determinadas línguas, a presença de flexão adjectival deve ser associada à elipse do nome. Como vimos, a flexão desempenha nas Línguas Germânicas um importante papel de legitimação e identificação de nomes vazios. No caso do Holandês, Kester sugere que o género gramatical do determinante permite identificar o nome vazio associado às chamadas construções humanas e às construções abstractas, estando por exemplo o género [+neutro] associado aos nomes vazios abstractos --observação que se pode alargar a Línguas Românicas com género neutro, como o Espanhol. Para Lobeck (1995), algumas flexões fortes, isto é, morfologicamente realizadas, como [±género] ou [±plural], podem ser associadas à legitimação de nomes vazios, nomeadamente em Alemão e Francês. Considero, por meu lado, que o papel legitimador das flexões referidas deve ser minimizado, mas que o seu papel identificador pode, pelo contrário, ser valorizado. Assim, as flexões adjectivais não me parecem ter qualquer incidência no mecanismo sintáctico de legitimação da elipse do nome nas Línguas Românicas, mas, em contrapartida, pode considerar-se que intervêm na identificação contextual dos nomes nulos, pelo menos nas construções [Dem+pro] e [Poss+pro], nomeadamente por meio da flexão de [±género]. Não é clara contudo a razão pela qual a flexão adjectival dos demonstrativos e possessivos identifica nomes vazios. Nas Línguas Românicas, a presença de flexão é constante no DP, pelo que não deveria servir de base para mecanismos particulares.
[46]
Estas reflexões levam-me a sugerir que é possível conciliar as teses de Kester e de Sleeman, ou seja, proponho que a flexão de [±género] identifica pro elíptico porque um elemento flexionado deve ser considerado como específico. Assumo que flexão e especificidade estão estreitamente ligados. Para discutir esta ideia, baseio-me em Williams (1997). Este autor nota uma relação estreita entre a flexão e traços semânticos como a especificidade. Williams refere Obenauer (1994) para quem a concordância implica a especificidade e a não-concordância a não-especificidade. No caso da concordância com extracção do objecto directo em Francês, analisada por este autor, constata-se que, em alguns casos --raros--, a concordância é facultativa. No entanto, esta opção é significativa: Williams nota que a concordância implica especificidade, e a falta de concordância implica não especificidade:

(79)
a. Combien de fautes a-t-elle faites ? (específico)
b. Combien de fautes a-t-elle fait ? (não específico)


Crucialmente, Williams observa que os clíticos são intrinsecamente definidos, e por consequência específicos, pelo que são também obrigatoriamente flexionados. Williams conclui que a concordância obrigatória do objecto e do clítico em (80) funciona como uma marca de especificidade:
[48]

(80) Ces erreurs, je les ai fait *(es) par accident


Podemos considerar que, em Português e em Francês, o sistema de flexões manifestado pelos constituintes demonstrativos e possessivos está também relacionado com uma interpretação específica.
[50] Como vimos, estas duas classes de constituintes flexionam por mecanismos de Concordância formais. Existe no entanto uma assimetria entre a flexão de [±número] e a de [±género]. Por que razão desempenha o traço [±género] em Português e em Francês um papel semântico na elipse do nome, mas não o traço [±número] --cf. (78b)? Esta questão pode ser parcialmente resolvida se se considerar que o traço [±género] é fornecido pelo próprio léxico, e não pela projecção de uma categoria funcional específica, como é o caso de [±número]. Embora existam tentativas de projectar o traço [±género] como núcleo de uma categoria funcional --é o caso, por exemplo, de Picallo (1991) e Bernstein (1993) que associam uma projecção funcional GenP, ou WordMarkerP, ao traço [±género]--, considera-se habitualmente o género como informação puramente lexical.[51] Crucialmente, para Kester, o traço [±número] é um dos vários traços codificados em Sintaxe a nível dos núcleos funcionais que dominam N, mas a informação de género é lexical e não tem o estatuto de núcleo sintáctico. Concluimos que, sendo de natureza lexical, o género seria um meio de identificar o antecedente contextual lexicalmente realizado do nome vazio.
Penso pois que, na estratégia da interpretação dos nomes vazios, existem mecanismos de identificação alternativos ao traço [+específico], sendo um deles a verificação da concordância em género entre o legitimador, o nome vazio e o antecedente. A interpretação específica nem sempre está presente no antecedente de uma elipse do nome, ao contrário da concordância em género, que aparece como uma condição de identificação estável nas construções [Dem+pro] e [Poss+pro]. Nenhum dos DP antecedentes do DP elíptico em (81) pode ser considerado [+específico], contudo a elipse do nome em (81) é gramatical. Mas em todos os casos de elipse em (81), existe concordância entre o género manifestado pelo nome antecedente --por exemplo, livro, que é [+masc]-- e a flexão de género realizada pelo especificador que legitima formalmente o nome nulo --estes é também [+masc]. A flexão de género torna o nome nulo interpretável, enquanto o especificador estes o legitima formalmente:

(81)
a. Procuro um livro realmente interessante. Estes pro não me interessam
b. Já algum dia viste um ovni? --Nunca vi nenhum / * nenhuma pro


Penso que estes casos podem ser confrontados a outros, em que um especificador não legitima a elipse do nome, como os quantificadores cada, chaque e quelques:

(82)
a. * Os alunos sentaram-se, mas cada pro estava calado
b. * Les étudiants sont entrés, mais chaque / quelques sont restés debout


Este tipo de exemplo pode ser interpretado com base na especificidade do traço [±género]: estas frases não admitem elipse do nome porque não existe meio de identificar o antecedente contextual, na medida em que o elemento legitimador não é [+partitivo] --é o caso dos quantificadores cada, chaque e quelques-- e também não manifesta qualquer flexão de [±género].
[54]
Em conclusão, proponho que a elipse do nome nas construções [Dem+pro] e [Poss+pro] é formalmente legitimada por um especificador. Quanto à identificação de pro, fiz uma proposta segundo a qual o género do especificador identifica o seu antecedente. No caso dos possessivos, assumo que, em Francês e em Português, o elemento pro é identificado pelo traço [±género] do artigo definido gerado em Dº, e, no caso dos demonstrativos, assumo que, em Português, pro é identificado pelo traço [±género] do especificador de DemP. Estas observações podem ser resumidas afirmando que a interpretação específica relacionada com a identificação da elipse do nome deve ser considerada como associada ao traço [±género]. Resta contudo explicar como em Francês o demonstrativo identifica o seu antecedente.
Vejamos os exemplos seguintes:

(83)
a. As-tu déjà vu un perroquet chanter en français? --Le mien / * mon pro parle le français
b. As-tu acheté le journal? --Celui pro de ce matin


No caso da construção [Poss+pro], um elemento como mon em (83a) deve ser considerado como flexionado, razão pela qual identifica pro. A elipse do nome não é boa, contudo, por razões de legitimação: mon é um núcleo funcional, e como tal, não pode legitimar nomes vazios. Quanto a le mien, le manifesta flexão de género e mien legitima pro, pelo que a elipse do nome é boa. Mas como o exemplo (83b) sugere, a identificação contextual de pro nas construções [Dem+pro] pode em Francês não estar associada ao traço [±género], mas ser desencadeada, entre outros, pela presença de elementos específicos, como um PP. Neste caso, a concordância, manifestada em celui na flexão de género, não desempenha um papel identificador --é um mero caso de concordância interna--, sendo essa função reservada para o PP de ce matin.
Em Português, contudo, a identificação de pro é rigorosamente paralela às condições de legitimação apontadas anteriormente para o possessivo: é presumível que a interpretação específica coincida com o traço [±género], e esteja disponível no DP independentemente do demonstrativo projectado, ou seja, as formas fortes em especificador são sempre constituintes flexionados e específicos. As frases seguintes ilustram este princípio: o especificador legitima o nome vazio, e o traço [±género] identifica-o especificamente; a interpretação é sempre específica, mesmo sem um PP, que em (84b) é redundante. Em Francês, contudo, a presença de um legitimador não específico deve ser compensada pela projecção de um complemento específico --ver (85):

(84)
a. Que pessoas reconheces na fotografia? --Esta pro e esta pro
b. Que livro quer levar? --Aquele pro (do Eco)

(85)
a. Quelles personnes reconnais-tu sur cette photo? --Celle pro *(qui est debout)
b. Vous prenez quel livre? -- * Ce pro / celui pro *(de Eco)

Outro tipo de construção pode pois ser associado a mecanismos de identificação de nomes vazios, nomeadamente os genitivos.

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