3.3.2.2.[Poss+pro]

No caso dos possessivos, algumas das observações produzidas sobre os demonstrativos podem ser conservadas: os possessivos parecem variar, nestas línguas, entre o estatuto de especificador e o de núcleo. Esta proposta está de acordo com algumas teses --por exemplo, Giorgi & Longobardi (1991)-- segundo as quais os possessivos podem variar de língua para língua, sendo numas núcleos determinantes e noutras especificadores funcionais, ou adjectivos. Em Francês, os possessivos como le sien podem ser considerados pronomes que legitimam nomes vazios. A minha hipótese é que também estes pronomes são gerados em [Spec,XP], e tal como os demonstrativos e quantificadores, legitimam por Concordância Especificador-Núcleo o nome vazio correspondente. Os dados do Francês indicam contudo que os possessivos devem ser gerados de modo complementar: como o pronome possessivo em Francês é um composto constituído de um artigo definido seguido de uma forma propriamente possessiva, conclui-se que cada elemento ocupa posições diferentes. Em Francês, na forma le mien, o artigo le estaria em Dº, mas o possessivo mien seria gerado como especificador da projecção funcional do núcleo [+possessivo]. Quanto aos determinantes possessivos, como son, a impossibilidade de legitimar nomes nulos sugere que são gerados como núcleos.
Relativamente à construção [Poss+pro] em Português, baseando-me no facto de não existir nesta língua distinção morfológica entre as formas determinante e pronominal dos possessivos, sugiro que estes projectam igualmente uma estrutura complementar: em formas como o meu, o artigo definido o é gerado em Dº, e a forma possessiva meu é gerada no especificador da projecção funcional correspondente. Assumo que essa projecção funcional é PossP, e está situada acima de QP e NumP, mas abaixo de DemP. Deste modo, o possessivo em Português pode ser visto exclusivamente como especificador. A assimetria em relação ao determinante possessivo em Francês --mon, son--, gerado como núcleo em Possº, confirma que a posição sintáctica do possessivo como especificador de uma projecção funcional justifica as diferenças anteriormente detectadas. Em Português, os possessivos são sempre especificadores, e em Francês são núcleos ou especificadores. Esta diferença é ilustrada nos exemplos dados em (7), citados de novo em (67):

(67)
a. * Jean aime ton style, mais Marie n'aime que [ son [e]]
b. O João gosta do teu estilo, mas a Maria só aprecia [ o seu [e]]
c. Jean aime ton style, mais Marie n'aime que [ le sien [e]]

O significado partitivo que estes elementos podem eventualmente implicar, como sugere Sleeman (1996), deve ser considerado secundário relativamente ao seu estatuto de especificadores. A gramaticalidade de (67b), por exemplo, parece-me poder ser relacionada com a própria estrutura do constituinte DP elíptico. Os possessivos podem em Português legitimar a elipse do nome, na medida em que, como é ilustrado em (68b), são gerados na posição de especificador de um núcleo funcional e podem legitimar por Concordância Especificador-Núcleo um nome nulo. A mesma proposta pode ser feita para os possessivos que em Francês ocupam [Spec,PossP] em (68a), ou seja os chamados pronomes possessivos. Em ambas as línguas, o artigo definido está em Dº, e não desempenha nenhum papel relevante na legitimação deste tipo de elipse do nome. Os determinantes possessivos franceses, por seu lado --mon, etc.--, estão em Possº, e como tal, são núcleos e não legitimam formalmente os nomes vazios.
Dou a seguir uma representação das estruturas anteriormente sugeridas, deixando de foras as projecções funcionais não relevantes:

(68)
a. Francês

b. Português

 

Assim como os demonstrativos, também a co-ocorrência entre possessivos e outros constituintes obedece a algumas restrições. Dadas as estruturas apresentadas em (68), existem restrições de natureza sintáctica e/ou semântica que impedem certas co-ocorrências:

(69)
a. * le son livre
b. * seu / o seu livro

Simplificando, as restrições podem resumir-se às duas seguintes: (i) não podem co-ocorrer dois constituintes com o traço [+possessivo]; (ii) não podem co-ocorrer dois constituintes com o traço [+definido]. Refira-se, por exemplo, que a expressão * le son livre é agramatical porque implica dois traços [+definido], e que, em Português, a expressão *seu livro é agramatical --embora seja gramatical no Português do Brasil--porque não manifesta o traço [+definido]. Este sistema de traços permite também concluir que em Português e em Francês o possessivo é a combinação de um artigo [+definido] e de um especificador [+possessivo], mas o Francês dispõe ainda da forma determinante son em Possº que verifica estes dois traços em simultâneo.
[41]

O modelo proposto em (68) permite explicar um largo leque de dados. Levanta-se no entanto a questão da inexistência em Português de um possessivo [+definido, +possessivo], como son em Francês. A observação dos modelos apresentados em (68) mostra que a diferença estrutural entre núcleo determinante e pronome especificador implica que um determinante como son é um núcleo [+definido], enquanto um especificador como sien é [-definido], não havendo em qualquer caso especificadores [+definido, +possessivo]. Observe-se no entanto que o modelo proposto não dá conta de co-ocorrências ilustradas no exemplo (70), pois em formas como estas, os dois constituintes un e sien devem ser considerados ambos [-definidos]:

(70) Il est venu avec un sien ami


Embora estes casos sejam relacionados com a língua literária e possam por isso ser considerados marginais, a história da língua francesa mostra que o possessivo passou por um estatuto de adjectivo atributivo pré-nominal, de que alguns modelos literários conservam o vestígio --cf Grevisse & Goosse (1988:173)
[43], o que implica que un sien ami é na realidade uma expressão indefinida na qual sien é um adjectivo possessivo pré-nominal.[44]
Em Português, os especificadores possessivos são [-definidos]. Na realidade, a definitude é dada pelo artigo, que é sempre obrigatório em Português; não há diferença estrutural nem semântica entre formas fortes e fracas, o que justifica que os especificadores possessivos nunca sejam [+definidos]: só o artigo definido é --obviamente-- [+definido]. Exceptuam-se, nesta análise, certos casos muito particulares como em meu pai está contente, em que, dada a natureza lexical de certos núcleos --como pai--, o artigo definido parece poder ser omitido.
Também é de referir que, em determinados casos, o possessivo pode em Português aparecer à direita do nome sem artigo definido, o que equivale a um adjectivo pós-nominal (cf Brito 1984):

(71)
a. Alguém tocou, ou é impressão minha?
b. Já não recebo uma carta tua há dois anos.


Observe-se ainda que o Português Europeu admite, em alternativa a o meu, uma forma simples meu num certo número de casos, nomeadamente nas construções predicativas (72a) e (72c), e em vocativos (72b) --além de certos núcleos lexicais já referidos, como pai--, podendo, num caso como no outro, talvez considerar-se que não chega a ser projectada a categoria DP:

(72)
a. Este livro é meu !
b. Sente-se, meu amigo.
c. É meu desejo nunca mais te ver

Além destas e de outras construções em Português Europeu
[47], a ausência pronunciada de artigo definido numa expressão possessiva caracteriza também o Português do Brasil. Na realidade, na variante brasileira, a ausência de artigo definido em construções claramente definidas é mais generalizada do que em Português, podendo talvez dizer-se que, nesses contextos, a categoria DP é projectada mas que o determinante definido não chega a realizar-se lexicalmente:[48]

(73) Meu avô materno foi minha primeira amizade


Observe-se que, crucialmente, o uso da forma possessiva sem artigo definido leva à impossibilidade de legitimar um nome vazio:

(74) Queres o teu copo ou queres o pro da tua irmã? -- * Quero meu pro


Considero que, nestes casos, uma restrição sintáctica impede o nome vazio de ser legitimado, na medida em que, presumivelmente por faltar o artigo, o elemento possessivo meu deve aqui ser considerado um núcleo [+definido], isto é, um determinante possessivo do mesmo tipo que o Francês mon. Isto equivale a dizer que, em (74), meu é um núcleo em Possº, e que, como tal, não legitima formalmente o nome nulo numa relação de Concordância Especificador-Núcleo. Neste caso, estamos perante uma elipse nominal agramatical.
Em síntese, as observações anteriores sobre as construções [Dem+pro] e [Poss+pro] são ilustradas na seguinte representação simplificada de um DP nas duas línguas:

(75

a. Francês

b. Português


Este modelo implica mecanismos de restrição semântica, nomeadamente destinados a justificar a impossibilidade de misturar demonstrativos e possessivos. Note-se no entanto que o Português permite uma construção que combina ambos os especificadores numa ordem fixa (ver 76d):

(76)
a. * celui son / * celui sien livre
b. * ce son / * ce sien livre
c. * este o seu / * o este seu livro
d. Este seu livro

Relativamente ao Francês, penso que existe, como foi já sugerido, uma restrição sobre a redundância do traço [+definido], que permite rejeitar (76a.b). Quanto ao Português, penso que o mesmo tipo de restrição poderá ser invocada: nesta língua, o artigo [+definido] exclui a ocorrência de elementos com o mesmo traço. Além disso, o exemplo (76d) sugere que, em Português, o possessivo meu pode provavelmente ser usado com adjectivo atributivo pré-nominal, em eco ao Francês un sien ami.
A questão da legitimação formal dos nomes vazios nas construções [Poss+pro] e [Dem+pro] pode agora ser reavaliada. Em primeiro lugar, as diferenças estruturais apontadas nas representações em (75) explicam os casos referidos anteriormente. A ideia central é que, em todos os casos em que um nome vazio é legitimado nas construções [Dem+pro] e [Poss+pro], estamos perante um elemento em posição de especificador de uma projecção funcional de NP, pelo que a hipótese central da dissertação pode ser alargada a estas construções: em Português e em Francês, os nomes nulos são legitimados por Concordância Especificador-Núcleo, por elementos possessivos ou demonstrativos. O nome vazio é legitimado por um especificador, sendo o seu conteúdo semântico recuperado junto de um elemento fornecido contextualmente. Esta sugestão permite generalizar a ideia de que um núcleo funcional não pode legitimar um nome vazio, e confirma que os nomes vazios só são possíveis quando o seu elemento legitimador é um especificador lexicalmente preenchido.

Como mostram os dados apresentados de (70) a (74), o morfema possessivo em [Spec,PossP] pode corresponder a um adjectivo, que, como vimos na estrutura apresentada em (37), também é projectado em [Spec,XP]. Do mesmo modo, os exemplos em (61) indicam que o demonstrativo pode ser considerado em certas construções um adjectivo em DP.
[53] Neste aspecto, os casos de elipse do nome com demonstrativo ou possessivo assemelham-se aos casos de elipse com adjectivos atributivos analisados adiante neste trabalho --ver parágrafo 3.3.3. Como para adjectivos atributivos e quantificadores, as construções aqui analisadas ilustram a tese de que especificadores, mas não núcleos, legitimam nomes vazios. Vejamos agora a questão da identificação do nome elíptico nestas construções.


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