3.3.2.As construções [Dem+pro] e [Poss+pro]

Foi apresentada no parágrafo 3.1 evidência de que, em Português, os constituintes demonstrativos e possessivos admitem sistematicamente complementos vazios, em contraste com o Francês, que só os parece admitir com as formas pronominais ou formas fortes. Tradicionalmente, considerava-se que, quando isoladas, as formas DEM e POSS eram pronomes, e quando precedendo nomes, eram determinantes ou adjectivos. Os constituintes envolvidos nestas construções pertencem a vários grupos de elementos tradicionalmente distintos e classificados como adjectivos ou pronomes: além dos demonstrativos e possessivos, que aqui analisamos, citam-se tradicionalmente, entre outros, os interrogativos, os relativos e os quantificadores. Do ponto de vista da estrutura de constituintes projectada, levanta-se a questão do seu estatuto categorial --serão núcleos, especificadores ou adjuntos? Na literatura sobre a questão, têm sido adiantadas propostas diferentes. De acordo com Abney (1987), que reflecte sobre o paralelismo entre artigo e pronome em Inglês, estes últimos constituintes são ambos gerados em Dº, mas o artigo distingue-se do pronome por tomar um NP complemento pleno, enquanto o pronome é intransitivo. Para Lobeck (1995), a maioria destes constituintes são núcleos, distribuídos complementarmente entre Dº e Numº. Lobeck considera, por exemplo, que demonstrativos como these são gerados no núcleo funcional Dº e podem legitimar um nome vazio por meio de traços morfológicos fortes --ver capítulo 2. Para Sleeman, estes elementos são gerados em projecções funcionais acima de NumP, e legitimam sistematicamente um nome vazio porque o regem estritamente.
A minha proposta para este tipo de elipse consiste em considerar o papel legitimador dos determinantes demonstrativos e possessivos em função da sua posição estrutural. Mostrarei que as construções [Poss+pro] e [Dem+pro] são a consequência directa do estatuto de especificador dos elementos DEM e POSS, e não dos traços semânticos envolvidos. Esta análise relaciona-se com a proposta adiantada para a legitimação de nomes vazios complementos de quantificadores. Ver-se-á também que se deve distinguir entre o Francês e o Português relativamente à identificação dos nomes vazios envolvidos em [Dem+pro] e [Poss+pro].

3.3.2.1.[Dem+pro]

Relativamente aos demonstrativos, vou seguir Sleeman (1996), no sentido de considerar que alguns dos constituintes no domínio das projecções alargadas do nome podem ser considerados pronomes gerados em posição de especificador e seguidos de pro. Em Francês, considero que demonstrativos como celui são pronomes que legitimam nomes vazios. Estes pronomes são gerados em [Spec,XP], e tal como os quantificadores, legitimam formalmente por Concordância Especificador-Núcleo o nome vazio correspondente. Do ponto de vista semântico, estes pronomes poderão estar associados a um significado partitivo: formas como celui/ceux denotam sub-conjuntos distintos do conjunto de referência, pelo que podem ser consideradas como incluídos nos elementos partitivos. No exemplo seguinte, o demonstrativo ceux denota o conjunto de elementos extraído do conjunto anteriormente referido:

(55) Quels livres penses-tu prendre? -- Je prends ceux pro de gauche


Pelo contrário, os exemplos em (56) sugerem que alguns demonstrativos franceses --ces em particular--não são especificadores partitivos, mas presumivelmente núcleos em Dº, o que explica que não legitimem nenhum nome vazio:

(56)
a. Je préfère celui pro que j'ai
b. Je préfère ces livres / * ces pro


Em Português, contudo, a inexistência de contrastes como os anteriores sugere que não é preciso postular uma diferença entre adjectivos e pronomes demonstrativos. No modelo aqui adoptado para a categoria DP em Português, falar de adjectivo --quando o demonstrativo é seguido de N-- ou de pronome --quando não há N-- não parece justificar-se. Na realidade, não existe em Português distinção morfológica entre adjectivos e pronomes. Os demonstrativos não evidenciam nenhum paradigma adjectivo/pronome, exibindo as mesmas formas quando seguidos de nome ou quando isolados, o que implica que os dois casos em (56) podem em Português ser reduzidos a um só:

(57) Prefiro estes livros / estes pro


De que maneira podem as diferenças anteriormente apontadas ser justificadas? Penso que o que está em causa é a própria estrutura interna do DP, pelo menos nas suas projecções funcionais mais altas. A minha proposta é que os demonstrativos não ocupam em Português e em Francês a mesma posição estrutural --presumivelmente, só os pronomes teriam uma distribuição idêntica. Para o Francês, adopto temporariamente as propostas de Brito (1993) e Lobeck (1995) segundo as quais o determinante demonstrativo ocupa a posição Dº, e a ideia de Sleeman de gerar o pronome demonstrativo francês em [Spec,DP]. Esta última posição, característica de formas como celui, é justificada pela autora por dados de extracção. Sleeman considera que o pronome partitivo en, que se move para fora do DP nas construções elípticas quantitativas, servindo-se da posição [Spec,DP] como lugar de poiso intermédio, é bloqueado pela presença de um demonstrativo, mas não, por exemplo, por um quantificador --que sabemos não estar em [Spec,DP]:
[39]

(58)
a. * Parmi ces verbes, il y eni a ceux ti qui sont toujours impersonnels
b. J'eni ai lu tous/plusieurs/deux ti chapitres


Em Português, o facto de os adjectivos não se distinguirem morfologicamente dos pronomes sugere que não existe uma diferença de posição como em Francês. A minha sugestão --provisória-- é que todos os demonstrativos em Português são especificadores, talvez gerados em [Spec,DP], tal como os pronomes correspondentes em Francês. Ao passo que o adjectivo demonstrativo está em Francês em Dº, estaria em Português em [Spec,DP]. Esta diferença, que equivale a dizer que o demonstrativo em Português é sempre um especificador, pode numa primeira análise explicar (57) versus (56). Note-se que, crucialmente, estes dados podem ser explicados por mecanismos puramente sintácticos, isto é, o significado partitivo que estes elementos podem eventualmente implicar é aqui irrelevante, sendo, em contrapartida, essencial a sua condição estrutural de especificadores. A gramaticalidade vs agramaticalidade dos casos referidos não me parece pois dever-se a imperativos de natureza semântica, mas à própria estrutura de constituintes.
Em resumo, se os demonstrativos são em Português unanimemente especificadores, podem legitimar sistematicamente a elipse do nome. Em Francês, pelo contrário, só os elementos demonstrativos em especificador, ou seja os chamados pronomes demonstrativos, podem legitimar nomes vazios. Os demonstrativos gerados em Dº não são legitimadores de pro.
Dou a seguir uma representação da estrutura sugerida para a construção [Dem+pro], nas duas línguas, deixando de foras as projecções funcionais não relevantes:

(59)

a. Francês

b. Português


Note-se que a estrutura apresentada deve, em Francês e em Português, ser associada a mecanismos de restrição semântica, de modo a explicar a proibição de ocorrência de formas como as seguintes, em que o demonstrativo não pode aparecer em co-ocorrência com o artigo definido:

(60)
a. *le celui / *ce celui livre
b *ce le / *le ce livre
c. * o este livro

Para explicar por que razão este é incompatível com o, podemos sugerir que em Português este, e em Francês ce e celui, são [+definidos] (Brito 1993). Sendo assim, o artigo definido não pode ser projectado; se o for, a estrutura é rejeitada, talvez ao nível da Forma Lógica. A mesma observação pode ser alargada à restrição de co-ocorrência entre núcleos e especificadores definidos: como ambos são [+definidos], a construção *ce celui, ou o este, violaria a restrição acima proposta.

A análise sugerida para os demonstrativos em (59), segundo a qual os demonstrativos estão em Português em [Spec,DP], não é desprovida de dificuldades. Em primeiro lugar, note-se que em Português o demonstrativo tem um uso diversificado: pode entrar em construções predicativas (61a), aparecer numa posição pós-nominal (61b), surgir como um aposto (61c) ou como nominativo (61d):
[43]

(61)
a. O meu livro é este
b. O Nome da Rosa foi o livro que mais vendeu em 1982, livro esse que tornou o seu autor mundialmente conhecido
c. O João, esse, anda todo contente
d. Essa é boa! Essa, não!


Além disso, parece-me que o equivalente sintáctico do demonstrativo Francês celui não é em Português, ao contrário do que seria de esperar, o demonstrativo este, mas um artigo definido, presumivelmente projectado em Dº:

(62)
a. Marie a acheté ceux pro de Paul
b. * Marie a acheté ces pro de Paul
c. A Maria comprou os pro do Paulo


Outro contexto sugere que, se o demonstrativo não ocupa Dº, pode também não ocupar [Spec,DP]: trata-se de frases com extracção como as seguintes, em que se observa uma assimetria entre o artigo definido e o demonstrativo:

(63)
a. [De quem]i é que viste ti o carro ti ?
b. *? [De quem]i é que viste ti este carro ti

As frases em (63) sugerem por um lado que o e este não podem ocupar a mesma posição de núcleo Dº --o que era esperado--, e, por outro, que a extracção do genitivo só é boa quando o demonstrativo não é projectado, isto é, aparentemente quando a subida do constituinte extraído não viola regras de Minimalidade. Observe-se que os dados de (63) podem levar a concluir que algumas das projecções alargadas do NP bloqueiam o movimento de constituintes para fora do DP, presumivelmente as projecções funcionais cujos especificadores tenham material lexical ou referencial, como é o caso do demonstrativo. (63) sugere pois que, se o demonstrativo não pode estar em Dº, poderia contudo estar em [Spec,DP], na medida em que a presença de material nesta última posição pode ser considerada como um obstáculo à extracção de constituintes --[Spec,DP] é uma posição intermédia obrigatória para os constituintes WH movidos para fora do DP. Contudo, os dados seguintes mostram que, na hipótese de todos ocupar a mesma posição, o demonstrativo também não pode ser considerado um especificador de DP. O exemplo (64a) indica que o quantificador todos ocupa uma posição mais alta que o demonstrativo, que deve corresponder a [Spec,DP], e em (64b), a operação de extracção pode ser bloqueada pela presença de todos:

(64)
a. A Maria comprou todos estes livros do Saramago ontem
b. *? [De quem]i é que a Maria comprou todos estes livros ti ?


Os exemplos anteriores indicam que o modelo apresentado em (59b) deve ser ligeiramente revisto. Vou pois propor que o demonstrativo é de facto em Português sempre um especificador, mas, contrariamente àquilo que é sugerido por Sleeman, Lobeck e Brito, não está nem em [Spec,DP], posição que reservo para elementos como o quantificador universal, com o qual o demonstrativo co-ocorre livremente ("todos estes..."), nem em Dº. Proponho que, em Português, o demonstrativo --tal como o possessivo e os demais adjectivos atributivos-- seja também gerado em especificador de uma projecção funcional específica. Denomino DemP esta projecção funcional, e considero que é projectada acima de QP e dos possessivos, mas abaixo de DP, de modo a explicar a ordem Todos+Dem+Poss, Dem+Q e Dem+Poss+Q nos seguintes exemplos:

(65)
a. Estes teus livros são raríssimos
b. Estes dois livros são caros
c. Estes teus dois livros são caros
d. Todos aqueles livros são caros
e. Estes pro são caros


De acordo com Drijkoningen (1993), os núcleos determinantes serão formas não específicas, e os especificadores formas fortes, ou específicas, o que equivale a considerar que a especificidade de um constituinte pode ser (em parte) determinada pela sua posição estrutural. Assumo que em Francês, a categoria funcional DemP é também projectada, sendo o demonstrativo fraco ce gerado em Demº e o demonstrativo forte celui gerado em [Spec,DemP] --ver a representação em (66). Deste modo, a projecção funcional DemP permite, por um lado, restabelecer o formato geral de legitimação de nomes vazios por um especificador com base na relação de Concordância Especificador-Núcleo, e permite, por outro, dar conta das diferenças apontadas entre o Português e o Francês por motivos de ordem estrutural. Os demonstrativos que não admitem nomes vazios são aqueles que estão em Francês em Demº, isto é, aqueles que são núcleos. Quanto à diferença evidenciada em (62), pode explicar-se pelos mesmos motivos: seria a consequência do facto de o demonstrativo Francês ces ser sempre um núcleo em Demº, que, como tal, não pode legitimar um complemento vazio.
Estas observações são ilustradas em (66). Note-se que os mecanismos de restrição semântica que foram apontados para a estrutura em (59) devem aqui ser de novo considerados: dois elementos definidos não podem co-ocorrer numa expressão nominal. Precisamente, a distribuição do traço [+definido] mostra que são excluídas todas as combinações em que haveria redundância, como le ce, o este ou ce celui:

(66)

a. Francês

b. Português



URL: