2.4.2.Flexão adjectival, legitimação e identificação de pro

A reflexão sobre as condições de ocorrência de nomes nulos em contexto adjectival leva a autora a assumir, por um lado, que estes são submetidos a condições de legitimação e identificação, e, por outro, que a morfologia flexional adjectival tem um papel de relevo na sua resolução.
Kester distingue os casos em que o conteúdo do nome nulo é recuperado por um antecedente lexical no contexto --aquilo a que se costuma chamar elipse--, e os casos em que o nome nulo é permitido por traços inerentes. Segundo Kester, a morfologia flexional tem sempre um papel em todas estas construções por razões de legitimação. Quanto à identificação do nome nulo, o seu conteúdo semântico é recuperado por um antecedente lexical, no caso de construções elípticas, e em casos de nome nulo com traços inerentes, o seu conteúdo semântico é tornado visível ao nível interpretativo por meio de morfologia adjectival especial ou por traços de género gramatical expressos pelo D. Sendo assim, a morfologia adjectival implicada corresponde ou à flexão habitual típica do adjectivo, ou a flexão adjectival especial realizada por razões de identificação.

2.4.2.1.Construções envolvendo pro elíptico

O quadro geral sobre categorias vazias adoptado por Kester, é Rizzi (1986), por um lado, e por outro, Lobeck (1995). Kester observa que em Inglês não há elipse --ver (42a)--, ao contrário das outras Línguas Germânicas e das Línguas Românicas. Para estas últimas línguas, Kester retoma a tese de Lobeck (1995) segundo a qual a categoria vazia associada a este tipo de frases é um pronome vazio não-lexical, correspondente a pro, que partilha várias propriedades com os pronomes (ver parágrafo 2.3.1). Kester observa que a distribuição de pro pode ser significativamente estendida de modo a contemplar pro elíptico, como em (42b).

(42)
a. * John bought the red car and [the green]

b. Jan kock de rode auto en [de groene pro]
O João comprou o carro vermelho e o verde


Relativamente às condições de legitimação e identificação de pro elíptico, a legitimação formal corresponde à sua distribuição num contexto determinado, e a identificação envolve o meio pelo qual o conteúdo do elemento nulo é determinado. O pronome não-lexical pro envolve legitimação formal por um núcleo regente especificado por certos traços fortes, e o seu conteúdo semântico é recuperado contextualmente. A definição do tipo de traços legitimadores de pro é crucial. Kester retoma as reflexões de Lobeck (1995) segundo a qual núcleos funcionais marcados por traços fortes [+Possessivo], [+Plural] e [+Partitivo] podem reger estritamente os seus complementos apagados. Kester considera também os traços-Õ--número, género, pessoa--, e traços como definido, humano, massivo, que podem servir para justificar a presença de propriedades semânticas codificadas em sintaxe. Sendo assim, o conjunto de traços legitimadores inclui traços morfologicamente realizados, como [+Plural], mas também traços semânticos, como [+humano].
No caso de legitimação e identificação de pro em contextos adjectivais, pro elíptico envolve legitimação formal por um núcleo regente, mas o seu conteúdo semântico é forçosamente recuperado por um antecedente contextual. Nestes casos de elipses contendo pro não referencial, os traços fortes não conseguem fornecer a totalidade do conteúdo semântico de pro, só parecem servir para tornar pro interpretável.
[23] É assim possível justificar por que pro elíptico é excluído em línguas como o Inglês: o adjectivo em (42a) não tem traços de acordo fortes, e falha portanto em legitimar pro.[24] Mas as mesmas elipses são boas em línguas em que o adjectivo está marcado por traços fortes: é o caso do Neerlandês em (42b), e também do Alemão, na frase seguinte:

(43)
Ich möchte das alte Buch kaufen aber Sie möchten das Neue [e]
Eu queria o velho livro comprar mas tu querias o novo
Eu queria comprar o livro velho mas tu querias o novo.



Kester vai no entanto alterar substancialmente as propostas de Lobeck. A primeira alteração prende-se com a configuração sintáctica exigida pelos nomes nulos. Outra alteração significativa tem a ver com o abandono da ideia de traços fortes. Contrariamente a Lobeck, Kester opta pelo modelo de Cinque (1993), que coloca os adjectivos em [Spec,XP] entre NP e D. Neste caso, os adjectivos não têm condições estruturais para reger pro, mesmo marcados por traços fortes
[26]. Kester propõe, em alternativa, que a legitimação e identificação de pro em contextos adjectivais envolve regência estrita por um núcleo funcional determinado, que recebe do adjectivo por Concordância Especificador-Núcleo os traços requeridos. O indicador (44) retoma a construção elíptica das Neue da frase em (43). Nesta análise, o adjectivo atribui traços por Concordância Especificador-Núcleo ao núcleo da projecção funcional (Fº), transformando-o num regente estrito de pro:

(44)

Este quadro teórico também questiona a importância dos traços específicos legitimadores de pro. Referindo o caso do Neerlandês, Kester nota que o morfema schwa não parece associado ao conjunto específico de Õ-features, legitimadores de pro no quadro de Lobeck, pelo que, em Neerlandês, tal como em Inglês, não deveria haver elipses, e frases como (42c) deveriam ser agramaticais. Em alternativa, Kester admite que é a própria flexão schwa em Neerlandês que é crucial por razões de legitimação formal: a flexão transforma o núcleo Fº num regente estrito por núcleo, sendo o conteúdo semântico de pro recuperado por um antecedente sintáctico. A presença da própria flexão adjectival, e não a presença de determinado traço, é que teria um papel central na distribuição dos nomes nulos. Kester associa assim explicitamente a presença da flexão adjectival com a ausência do nome.
Baseando-se nos dados da elipse em Neerlandês, a autora estabelece uma distinção clara entre legitimação formal e identificação do nome nulo pro. Nalguns casos, pro é legitimado por flexão adjectival, cabendo a uma estratégia alternativa identificar o nome nulo. Noutros casos, pro é ao mesmo tempo legitimado e identificado pela flexão. Desta última ocorrência, Kester dá como exemplo aquilo a que chama construção partitiva genitiva
[28] (CPG), caracterizada pela flexão [-s], exemplificada na frase seguinte:

(45)
Er is [its verschrikkelijks] gebeurd
Há qualquer coisa terrível acontecido
Aconteceu alguma coisa terrível


Duas das questões levantadas por este tipo de construção são as da estrutura sintáctica da CPG e do estatuto do morfema [-s]. A proposta de Kester para a CPG em Neerlandês, é que o adjectivo está numa posição pré-nominal, o que implica que a CPG inclui um nome nulo pro. A configuração sugerida é a seguinte, tendo como exemplo a CPG veel leuks (lit. muito de linda):

(46)


Na estrutura apresentada, vê-se que pro é caracterizado pelo traço [+massivo]. Esta hipótese é apoiada, por um lado, pelo conjunto de Ds iniciais --só Ds compatíveis com [+massivo] se encontram na CPG--, e, por outro, pelo facto de o verbo na oração em que a expressão nominal pode ser sujeito estar sempre no singular. Kester considera que o morfema [-s] é um exemplo de morfologia casual especial, relacionada com a presença do nome nulo pro caracterizado como [+massivo].
No espírito de Rizzi (1986), Kester propõe pois que pro está sujeito a condições de legitimação e identificação, neste caso verificadas pela morfologia flexional presente no adjectivo. A morfologia adjectival transforma o núcleo funcional Fº num regente estrito, possibilitando as condições de legitimação formal de pro. Demais, o morfema casual [-s] torna pro, especificado por [+massivo], visível a nível da interpretação, pelo que o pronome não-lexical pro é ao mesmo tempo legitimado e identificado por morfologia adjectival especial
[31].

2.4.2.2.Construções envolvendo pro humano e abstracto

No mesmo capítulo, Kester aborda as construções envolvendo nomes nulos marcados por traços [+humano] ou [+abstracto], e defende que este tipo de pro é formalmente legitimado pela morfologia adjectival, mas que a sua identificação se processa de maneira diversa. Relativamente àquilo que rotula de construção humana, Kester nota que, se o Inglês não admite pro elíptico em construções como (47a), exigindo sempre a forma plena one, admite no entanto algumas construções do tipo: the poor, the rich, the French, etc, como em (47c):

(47)
a. * the red car and [the green pro]

b. the red car and [the green one]
c. [The rich pro] are lonely


Exemplos como (47c) são muito limitados, já que só se referem a humanos
[33] e têm uma interpretação marcadamente genérica. Demais, levantam a questão de saber se correspondem a uma verdadeira construção adjectival, ou se serão antes o resultado de uma nominalização, hipótese clássica contra a qual Kester argumenta. Depois de demonstrar que a hipótese da nominalização é inviável --os adjectivos envolvidos na construção humana não verificam as características dos verdadeiros nomes[34]--, Kester assume que também a construção humana consiste num adjectivo seguido do nome nulo pro. Os exemplos estudados mostram que pro é de facto [+humano], [+genérico] e [+plural], pelo que Kester conclui que, nas construções humanas, esses são traços por defeito --inerentes-- de pro. Isto parece corresponder à única instância de pro legitimada em Inglês: traços diferentes dos referidos levam à proibição de pro, como em (47a), em que pro não é nem [+humano] nem [+genérico].
Estabelecendo um paralelismo com a análise de Rizzi (1986) sobre pro objecto nulo em italiano, Kester observa que a interpretação por defeito --arbitrária, na terminologia de Rizzi-- é obtida na ausência de morfologia flexional. Relativamente às construções adjectivais do tipo (47c), Kester nota que, como para o pro objecto nulo arbitrário, também aqui não há morfologia flexional nem antecedente lexical dos quais o seu conteúdo semântico possa ser recuperado: nestas construções adjectivais, a interpretação por defeito é assumida.
Outra observação relevante de Kester é a de que os adjectivos envolvidos na construção humana têm um plural irregular, que é o morfema [-n] em vez de [-s]
[35]. Crucialmente, o morfema [-n], quando escolhido, induz uma interpretação arbitrária de tipo [+humano, +genérico, +plural]. Para Kester, este morfema é uma flexão adjectival cuja utilidade é legitimar e identificar pro marcado por traços inerentes[36].

(48)
a. De blinden / * blindes (os cegos)

b. De ziecken (os doentes)



Os factos anteriormente expostos permitem concluir que o contraste inicialmente denunciado em (47) se pode explicar em termos de ausência / presença de morfologia flexional
[38]. Os adjectivos em Neerlandês são flexionados por [-e] em todos os casos de pro, humano ou elíptico --ver (42b) e (48)--, enquanto em Inglês os adjectivos não manifestam nenhuma flexão. En Neerlandês, [-e] é realizado nas construções humanas em todos os adjectivos, mesmo os que não flexionam habitualmente na presença de um nome pleno. Claramente, [-e] não corresponde ao padrão da flexão adjectival e deve ser realizado por outros motivos. Kester assume que o é por razões de legitimação formal: [-e] é um legitimador formal de pro, embora não o consiga identificar.
A seguinte tendência desenha-se no modelo de Kester: no caso da elipse do nome, a presença de um antecedente lexical contextual torna possível a recuperação semântica, sendo pro formalmente legitimado pelo núcleo Fº. Quando não há antecedente lexical --quando há traços inerentes--, várias estratégias surgem: ou há uma flexão adjectival especial [-n] quando pro tem os traços [+humano, +plural, +genérico], e nesse caso [-n] é suficiente marcado para tornar pro visível na LF; ou, nos casos de construção inerente não-humana, assume-se que o conteúdo de pro é legitimado por [-e] e é identificado sob Concordância Núcleo-Núcleo pelo traço gramatical de género de D. Neste último caso, Kester propõe que existem --em Neerlandês-- regras de redundância lexical segundo as quais pro com traços inerentes humanos é identificado pelo artigo definido não-neutro de. Estas mesmas regras implicam um pro com traços inerentes não humanos, identificado pelo artigo definido neutro het, construção que Kester rotula de abstracta. D com traço gramatical [± neutro] pode pois seleccionar por Concordância Núcleo-Núcleo uma projecção funcional específica ligada à interpretação abstracta, e ela própria regente de pro. Os casos de construção humana e abstracta referidos são exemplificados a seguir:

(49)
a. blinden pro (os cegos)
b. de besprokene pro (a pessoa de que se falou)
c. het besprokene pro (aquilo de que se falou)


Proponho no quadro (50) uma síntese dos casos de pro em construção adjectival analisados por Kester para o Neerlandês A observação do quadro leva a concluir que a flexão adjectival em Neerlandês, habitualmente considerada como pobre, possibilita no entanto uma variedade de construções com pro.

(50)



legitimação

identificação

pro elíptico


flexão [-e]

antecedente lexical


construção partitiva [+massivo]

flexão [-s]

flexão [-s]

pro
inerente

construção humana genérica
[+humano, +plural, +genérico]

flexão [-e]

flexão [-n]


construção humana
[+humano,-plural]

flexão [-e]

Género em D
(de [-neutro])


construção abstracta
[-humano, -plural]

flexão [-e]

Género em D
(het [+neutro])



Além do Neerlandês, põe-se a questão da relação entre morfologia flexional e nomes nulos nas outras Línguas Germânicas, e também nas Línguas Escandinavas e Românicas, conhecidas pelo seu sistema flexional variado. A análise apresentada por Kester indica que, em todos os casos citados, a morfologia flexional do adjectivo tem um papel relevante na legitimação do pro elíptico ou inerente.
Em Alemão de acordo com o que foi assumido, existem também construções humana e abstracta, já que os adjectivos são flexionados e pro pode ser formalmente legitimado pela flexão do adjectivo. Em elipses, pro tem um antecedente lexical e na ausência de antecedente lexical, isto é, em construções humanas, são os traços inerentes que tornam pro visível em LF, pelo género de D que pode levar a distinguir [+neutro] e [-neutro] --ver (51).
[41] Além disso, como o Alemão distingue entre masculino, feminino e neutro, encontra-se não só a construção abstracta com género neutro, mas também dois tipos de construções humanas, masculina e feminina --ver (52):

(51)
a. der Blinde pro überquerte die Strasse
O cego atravessou a rua
b. das Gute pro an der sache ist, dass er immer rechtzeitig ist
O bom neste caso, é que chega sempre a horas
c. er hat den roten Wagen und [den grünen pro] gekauft
Ele comprou o carro vermelho e o verde

(52) der / die / das Alte pro (o homem / a mulher / a coisa velho(a))

Para as Línguas Românicas, Kester cita o caso do Espanhol, que segue o mesmo tipo de padrão relativamente às construções humana, abstracta e elíptica:
[44]

(53)
a. los extremamente ricos pro
b. lo verdaderamente interessante pro
c. los libros verdes y los rojos pro


É interessante notar que a forma do artigo definido lo aparece na construção abstracta. A tradição gramatical distingue entre masculino e feminino para nomes, correspondendo aos artigos el e la, mas no caso de pro legitimado por um adjectivo, existe uma terceira distinção associada à interpretação abstracta
[46]. Estas construções são iguais às referidas para o Alemão em (52): existem duas construções humanas, masculina e feminina, e existe uma construção abstracta, neutra. Esta distinção não parece existir nem em Português nem em Francês, línguas em que as flexões de masculino e neutro se confundem.

(54)
a. el bueno pro y el malo pro de la película
O bom (herói) e o mau da fita
b. la buena pro y la mala pro
A boa (heroína) e a má
c. lo bueno pro y lo malo pro
O bom (aspecto) e o mau


Em suma, Kester assume, ao contrário de Lobeck, que a legitimação de pro implica regência por um núcleo funcional com um Especificador marcado por flexão explícita. Isto baseia-se em factos segundo os quais é a presença da flexão adjectival, e não a presença de determinado traço, que legitima pro. Adjectivos flexionados tornam, sob Concordância Especificador-Núcleo, um núcleo funcional Fº num regente estrito de pro. Embora os dois pro distinguidos por Kester sejam sempre legitimados pela flexão, diferem contudo na sua identificação. Se a elipse é sempre identificada contextualmente por um antecedente lexical, existem estratégias variadas para pro com traços inerentes: o uso de morfologia adjectival especial, como [-s] ou [-n], ou o uso de traços de género gramatical realizados no D.

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