SOBERANIA DO POVO, 30 de Junho de 2000


Opinião Própria 
Luís Seabra Lopes, professor da Universidade de Aveiro 
Estação Arqueológica do Cabeço do Vouga

[Nota 1: Ao contrário do que Soberania do Povo parece pensar, Luís Seabra Lopes não tem qualquer vínculo à Estação Arqueológica do Cabeço do Vouga]  
[Nota 2: Para ver o contexto das citações, basta seguir as ligações]

A importância patrimonial do Marnel 
Fernando Silva não tem qualquer visão sobre a história da região do Vouga na época romana e medieval 

Têm aparecido na zona do Marnel (Lamas do Vouga), vestígios arqueológicos de várias épocas. Nos últimos anos, o Gabinete de História e Arqueologia da Câmara Municipal de Águeda, dirigido pelo arqueólogo Fernando Silva, tem feito algumas escavações / limpezas em vários pontos do Marnel, nomeadamente na chamada Estação Arqueológica do Cabeço do Vouga e no sítio do Passal. 

Naturalmente, Fernando Silva pede mais recursos para as escavações. Quanto mais melhor. No entanto, as entidades locais, regionais e nacionais potencialmente financiadoras das escavações precisam de perceber o que está em jogo, caso contrário nunca colocarão o Marnel no topo das suas prioridades. 
  
Importância do Marnel 

Notoriamente, Fernando Silva tem dificuldade em explicar em que assenta a importância patrimonial do Marnel. Diz que a estação arqueológica é «um património nacional importantíssimo» (jornal Região de Águeda, 12/2/1999), mas não explica porquê. 


Pois bem, parece-me que o património arqueológico do Marnel é importante a três níveis: 

Veja-se na internet, a página https://sweet.ua.pt/~lsl/talabriga

Fernando Silva não explica isto às pessoas. Depois lamenta que os responsáveis autárquicos ainda «não se tenham apercebido bem da importância científica e patrimonial que representa o Cabeço do Vouga» (este jornal, 9/2/2000). Claro: para eles perceberem, é preciso que alguem lhes explique. Não é aos responsáveis autárquicos que compete ler a literatura científica. Mais: para os políticos actuarem, é preciso que os cidadãos exijam, e estes só o podem fazer se estiverem informados. 
Resta agora averiguar as razões que levam Fernando Silva a não explicar aos cidadãos e aos políticos qual a importância do Marnel. Será por não querer ou por não saber? Uma mistura das duas coisas? 
Estas interrogações levam-me, naturalmente, a passar em revista estes últimos anos, em que tem crescido o interesse pela arqueologia regional e, em particular, pelo Marnel. 
Em 1993, comecei a interessar-me pela rede viária romana e medieval da Bairrada. Uma vez que o estudo da rede viária está intimamente ligado às localizações das cidades, rapidamente me vi confrontado com o problema da localização da cidade luso-romana de Talábriga. A tese amplamente aceite era a de que Talábriga se situava na freguesia da Branca e que uma outra cidade, Vacca, teria existido no Cabeço do Vouga. Passando em revista a literatura, verifiquei que a defesa da hipótese da Branca assentava num erro de contas. Reanalisando o problema, cheguei à conclusão de que Talábriga só poderia ter-se situado no Marnel. Os resultados da primeira fase da investigação foram publicados na revista Portugalia (Universidade do Porto) em 1995. Nos dois anos seguintes publiquei resultados complementares que confirmam a hipótese do Marnel. Não fui o primeiro a propôr que Talábriga ficava no Marnel, mas fui seguramente o primeiro e até agora único a fazê-lo de forma fundamentada e sólida. 
Entretanto, a Câmara Municipal de Águeda, então presidida por Denis Ramos, começa a interessar-se pelo património arqueológico do concelho. Em 1996, Fernando Silva é convidado e assume a responsabilidade do recem criado Gabinete de História e Arqueologia. Os trabalhos de limpeza e escavação no Marnel começaram nesse mesmo ano. 
  
Talábriga não interessa? 

O meu interesse e as minhas primeiras publicações científicas sobre o assunto são, pois, anteriores à vinda de Fernando Silva para Águeda. 
No final de 1997, contactei Fernando Silva com o intuito de me informar dos resultados das escavações entretanto realizadas. Algum tempo depois o próprio me acompanhou em visita ao Cabeço da Mina. Foi nesta ocasião que me comecei a aperceber da forma como Fernando Silva encara a História. Perguntei-lhe, depois de um bom bocado de amena conversa, o que ele pensava dos meus trabalhos sobre Talábriga. A resposta, em tom algo agressivo, não se fez esperar: «Olhe, Talábriga não me interessa nada!» disse. Pouco tempo depois, o jornal Público (8/3/1998) regista esse mesmo ponto de vista: «Mais interessado na possibilidade de realizar um trabalho contínuo na área, este estudioso considera que o facto de os vestígios encontrados pertencerem à antiga cidade de Talábriga é meramente secundário». 
Secundário? Qualquer pessoa vê que, se Talábriga não era ali, tinha que ser noutro sítio, sendo, nesse caso, completamente diferente a história da região do Vouga na época romana. A localização de Talábriga é secundária apenas se a história da região for secundária, mas, então, como justificar tanta despesa? Só para coleccionar cacos? 
Pensei que, com o tempo, Fernando Silva se informasse e adoptasse uma postura mais razoável relativamente ao problema. Mas parece que tal não aconteceu. Pelo contrário, considera que quaisquer referências à campanha de Décimo Júnio Bruto e ao importante episódio de resistência ocorrido em Talábriga, em lugar de dignificarem o Marnel e potenciarem o seu valor patrimonial, são meros «revivalismos pós-modernistas deste final de século» (este jornal, 2/10/1998). 
  
Uma estação emblemática 

Na sua recente entrevista, vira um pouco o bico ao prego: «Trata-se de uma estação emblemática, porque está associada à lenda e à história de X Júnio Bruto. Queria-se acreditar que no Cabeço do Vouga terá ficado a tal Talábriga (capital dos Túrdulos)» (este jornal, 9/6/2000). Estará, finalmente, a ganhar sensibilidade para o marketing? Aproveito para esclarecer que os Túrdulos, povo que, segundo Pompónio Mela, habitou toda a fachada litoral entre Tejo e Douro, se alguma capital tiveram, essa capital só pode ter sido Scallabis (Santarém) e nunca Talábriga. Caso esteja a referir-se aos Turduli Veteres, também esses não tiveram por capital Talábriga, mas sim Lancóbriga. 
Em paralelo, Fernando Silva empenha-se em desvalorizar a minha contribuição, umas vezes de forma explícita («Seabra Lopes não descobriu a pólvora apenas apresenta, pela primeira vez, factos …», Público, 8/3/1998), outras vezes de forma encapotada (Jornal de Notícias, 19/2/1999). Pelo menos reconhece que fui o primeiro a apresentar factos. Já não é mau! Mas, para quê tanta má vontade? A posição do Gabinete de História e Arqueologia sobre o Marnel romano continua, de resto, a ser errática: ora dizem que o «oppidum Vacca seria a transmutação da aguerrida e insubmissa Talábriga» (este jornal, 2/10/1998), ora que as ruinas pertenceram à «cidade luso-romana de Vacca ou Váccua ou, eventualmente, Talábriga» (este jornal, 13/11/1998, e Jornal de Notícias, 19/2/1999) e, ultimamente, falam dos «defensores e detractores da existência de Talábriga (assim se denominava)» não fazendo qualquer referência a Vacca (este jornal, 9/6/2000). Aproveito para esclarecer que a existência de Talábriga nunca esteve em dúvida, tendo havido discussão apenas sobre a sua localização. 
Já que estou em maré de correcções, cá vai mais uma. Fernando Silva diz: «Associado a este local aparece a existência de um povoado extremamente importante, segundo alguns historiadores do século XIX, que teria a ver com as campanhas do X Júnio Bruto» (este jornal, 9/6/2000). Até prova em contrário, isto está errado. Não conheço nenhum trabalho de fundo sobre Talábriga e/ou sobre as campanhas de Bruto que tenha sido escrito e publicado no século XIX. Toda a discussão estava centrada em Emínio e Conímbriga. O tal episódio das campanhas de Bruto foi tratado com grande destaque pela primeira vez em 1907; as primeiras propostas de localização de Talábriga no Marnel são da década de 1930; antes da década de 1990, a associação entre o Marnel e as campanhas romanas raramente foi aflorada. 
  
Falta de visão? 
Em resumo, parece-me evidente que Fernando Silva não tem qualquer visão sobre a história da região do Vouga na época romana e medieval, sendo-lhe por isso dificil enquadrar o papel do Marnel nessa história. Atrevo-me mesmo a afirmar que Fernando Silva denota desconhecimento de factos históricos e historiográficos básicos. É de estranhar, também, que em quatro anos de investigação não tenha produzido qualquer publicação. Por outro lado, o enquadramento histórico do Marnel não pode hoje fazer-se ignorando os meus trabalhos e, em particular, a relação que estabeleci entre Talábriga, a civitas Marnele e a Terra de Vouga. A este propósito tomo a liberdade de citar, de uma carta de Jorge de Alarcão, a seguinte apreciação sobre um desses meus trabalhos: «um precioso contributo para a definição dos limites do território da civitas». É isto que Fernando Silva tem grande dificuldade em engulir. 
Aprisionado entre a ignorância e o orgulho, o nosso arqueólogo acaba por não conseguir articular um discurso coerente. Como resultado, não convence os políticos locais e nacionais da necessidade de investir de forma mais substancial na investigação arqueológica do Marnel e o processo vai-se arrastando. 
Esta é a primeira vez que apresento publicamente o meu ponto de vista sobre a forma como a investigação no Marnel tem estado a ser orientada. Faço-o, não por gosto, mas sim por obrigação. 
- Luís S. Lopes