SOBERANIA DO POVO, 9 de Junho de 2000


Entrevista Isabel Moreira


Fernando Silva, arqueólogo responsável pelo trabalho na Estação Arqueológica do Cabeço do Vouga 

A investigação dos anos 60 representou dinheiro e tempo perdido.

Os trabalhos poderiam ter avançado mais depressa. 

Poderiam estar já mais áreas abertas. 

É urgente aumentar a equipa. 
  
"Uma estação emblemática" 
  
Fernando Silva é o arqueólogo responsável pelo trabalho de investigação na estação arqueológica de Cabeço do Vouga, uma estação que considera "emblemática", na qual se andam a fazer investigações desde os anos 40. 
O responsável, em entrevista a SP, disse que "a Câmara Municipal deve dar mais importância" e ainda que "é indispensável o alargamento da equipa de trabalho", que neste momento, é composta por dois elementos a tempo inteiro. Fernando Silva falou ainda dos projectos futuros para aquele local, nomeadamente a criação de um museu arqueológico. 

SP: Peço-lhe que faça um breve enquadramento da estação arqueológica de Cabeço do Vouga... 

Fernando Silva (FS): Começou a ser conhecido a partir dos finais do século XIX, pelo menos em termos regionais. Há alguns escritos que aparecem no jornal "Escola Popular", onde se chama a atenção para a existência de ruínas no Cabeço do Vouga. Associado a este local, aparece a existência de um povoado extremamente importante, segundo alguns historiadores do século XIX, que teria a ver com as campanhas do X Júnio Bruto, no século II.

SP: Quando é que foram feitas as primeiras intervenções? 

FS: Nos anos 40. Nessa altura, foram essencialmente na plataforrna do cabeço da mina. Não tiveram continuidade. 

SP: Que tipo de trabalho foi desenvolvido nessa altura? 

FS: Pôs-se a descoberto o trecho de muro e uns nichos na parte voltada a norte. Já se fizeram algumas sondagens, o que levou os investigadores da época (Rocha Madaíl e Sousa Batista) a considerarem que seria um povoado romanizado. Foi publicado uma espécie de relatório na revista do Arquivo do Distritode Aveiro, mas a investigação sobre Cabeço do Vouga morreu aí. 

SP: Quais foram os resultados desses trabalhos? 

FS: Os resultados das campanhas dos anos 40 não foram concludentes quanto ao tipo de estação em presença. Facto que fez com que os defensores e os detractores da existência de Talábriga (assim se denominava) tivessem razões de sobra para, cada qual, defender a sua posição. 

SP: Já há conclusões quanto a isso? 

FS: Começa a afirmar-se, cada vez mais, que estamos, pelo menos no cabeço da mina, em presença de uma fortificação romana. Não de um povoado propriamente dito, embora tenha estruturas adjacentes de um povoado. 0 que está à vista é uma grande fortificação romana. 

SP: Posteriormente, o que é que foi feito? 

FS: Já nos anos 60, houve pequenas intervenções pontuais, tendo sido abertas mais umas quadrículas e uns buracos. Mas o trabalho mais uma vez, morreu por aí. 

SP: Com vinte anos pelo meio.... 

FS: Repare, os anos 40 não foram propícios à investigação arqueológica. Convém não esquecer que era a altura da guerra, as economias dos países também não eram favoráveis e quanto às mentalidades nem se fala. 0 interesse e a sensibilidade para o património que existia era essencialmente em relação aos Grandes monumentos do património nacional, como, por exemplo, Jerónimos, Batalha ou Alcobaça, que marcaram pela volumetria e peso. De resto, as estações arqueológicas, tirando um ou outro caso de estações emblemáticas, na sua maioria, acabaram por, depois de feitas algumas sondagens, serem deixadas ao abandono, apesar de muitas serem classificadas já em 1910. Classificações que, na prática, não conduziram a nenhuns resultados, de tal forma que algumas delas foram destruídas. 

SP: O que é que foi feito no Cabeço do Vouga nos anos 60? 

FS: Foram feitas algumas sondagens por um professor da Universidade de Coimbra. 

SP: Tiveram resultados produtivos? 

FS: O trabalho também não conduziu a grandes resultados. Inclusive, desconhecem-se os dados que obteve, apenas são conhecidas as áreas de sondagem. De resto, não foi nada publicado, nem se sabe se foram recolhidos materiais. Repare, não se pode trabalhar no Cabeço do Vouga sem fazer uma boa leitura do trabalho de Rocha Madaíl, apesar de ter interpretações menos correctas. Quanto à investigação dos anos 60 foi tempo e dinheiro perdido porque dela não restou qualquer documentação.

SP: Quando é que se começou a trabalhar verdadeiramente no Cabeço do Vouga? 

FS: Nos anos 90, regressou o grande entusiasmo pelo Cabeço do Vouga, pela mão da Câmara Municipal, altura em que era presidente Denis Padeiro. Trata-se de uma estação emblemática, porque está associada a lenda e à história da campanha do X Júnio Bruto. Queria-se acred itar que no Cabeço do Vouga, terá ficado a tal Talábriga (capital dos túrdulos). Isso fez com que algumas pessoas se movimentassem para que a estação voltasse a ser estudada.


"A Câmara terá que se empenhar mais ... "

Equipa reduzida provoca atraso na investigaçao 

SP: A história da investiga.ção em Cabeço do Vouga é feita de avanços e recuos... 

FS: 1997 foi o ano de arranque dos trabalhos arqueológicos. Começou-se de facto, a intervir nas zonas já escavadas nos anos 40, para pôr as ruínas à vista, que estavam completamente atolhadas e aterradas e em avançado estado de degradação. Não se começou a trabalhar em áreas novas, porque Cabeço do Vouga, quer na plataforma da mina quer na do cabeço redondo, tem buracos de todos as épocas. Toda a gente fez buracos no Cabeço do Vouga, uns com interesse científico, outros monetário, inclusive, já por lá passaram detectores de metais, o que dificulta a interpretação da estação, pela informação que se perde. Daí que tivéssemos optado por começar os trabalhos pondo a descoberto as ruínas que tinham sido já vistas nos anos 40, confrontando com a planta que Rocha Madaíl publicou. 

SP: Mas foram abertas novas áreas de escavação? 

FS: Foram a partir de 1998. 

SP: É normal tanto tempo? 

FS: É porque qualquer quadrícula que se abra nesta estação dá grandes quantidades de material para estudar, o que levanta outras questões. Importa que não haja dispersão na área da escavação, para que se possa perceber a estação no seu conjunto. Até agora, tivémos uma espécie de retalhos, mas que não levaram a manta nenhuma. Perceber a estação no seu todo é a grande preocupação das modernas campanhas que se têm feito. 

SP: Portanto, na sua opinião os trabalhos têm avançado a um ritmo razoável? 

FS: Está pensar-se publicar, para o ano, uma primeira informação. Poderia, no entanto, avançar-se mais depressa, poderiam estar já mais áreas abertas. 

SP: Porque é que não estão?

FS: Para isso, era necessário uma equipa mais alargada, a tempo inteiro e durante todo o ano. 

SP: Quantas pessoas estão a trabalhar a tempo inteiro? 

FS: Duas. 

SP: As grandes campanhas de escavação quando é que têm lugar? 

FS: Em Julho. 

SP: Quantas pessoas são necessárias? 

FS: No mínimo, uma equipa de cinco pessoas. Somos confrontados com os mais vari ados problemas, como por exemplo, a necessidade de cortar a vegetação. Por isso, defendo urna maior coordenação entre a arqueologia e todos os departamentos da Câmara, que também têm dificuldades de coordenar os seus trabalhos. Nós temos que estudar a estação e não podemos estar a preocuparmo-nos com a vegetação que começa a nascer, outros terão que assumir essas tarefas. 

SP: Já propôs a proposta à Câmara para aumentar a equipa. 

FS: Fiz a proposta e a Câmara abriu o concurso, ao qual concorreram duas pessoas, Há que pensar também no restauro que tem que ser feito a tempo inteiro. 

SP: A Câmara tem dado a devida importância ao Cabeço do Vouga? 

FS: Tem dado importância mas talvez pudesse dar mais norneadamente alargando a equipa. 

SP: Que materiais é que, até agora, foram encontrados? 

FS: Esse ncial mente ceramicas, peças de adorno corporal, fragmentos de peças em bronze decoradas. 

SP: E onde é que se encontra todo esse material? 

FS: Está em posse da Câmara, devidamente acondicionado. 0 material das campanhas vai sendo tratado, devidamente etiquetado e embalado até que comece a ser estudado. 

SP: Podemos concluir tratar-se de um património valioso? 

FS: Sem dúvida. 

SP: Então, na sua opinião, o que é que explica o facto de apenas estarem aqui a trabalhar duas pessoas e todo este compasso de espera? 

FS: Penso que terá a ver com prioridades ... Talvez não se tenham apercebido bem da importância científica e patrimonial que representa o Cabeço do Vouga. Há empenho da parte da autarquia, o que não significa que venham trazer os remédios ao doente. Falta dar passos mais significativos. A autarquia está empenhada, mas terá que se empenhar mais. 


Os planos para Cabeço do Vouga 

Percursos pedonais e recuperaçao de ruínas 

SP: Que planos estão destinados a Cabeço do Vouga? 

FS: Está tudo encaminhado para que exista um museu de arqueologia, não só vocacionado para a arqueologia de Cabeço do Vouga, ou da freguesia de Lamas, mas, evidentemente para a arqueologia regional e local, tendo sempre como núcleo central o Cabeço do Vouga. Tem estruturas, tem materiais, tem condições históricas, científicas e didácticas para que seja, de facto, o grande pólo impulsionador de toda a arqueologia da região. Sem querer copiar ninguém, devo  dizer que se não existisse Conímbriga, certamente o desenvolvimento em termos de investigação científica no domínio da arqueologia seria muito menor. Essa é a grande ver­dade. Conimbriga aglutinou desde os anos 50, toda a investigação. 

SP. Tem outros projectos? 

FS: Está destinado ainda fazer-se a musealização do local com a criação de percursos pedonais e a recuperação das ruínas, por forma a que as pessoas as possam visitar e entender. Para isso, terão que ter a sinalética necessária. É neste sentido que se caminhará mas, claro, o museu será a parte fundamental. 

SP: Quando é que isso tudo estará concluído? 

S: Este ano, em principio, está tudo encaminhado para que se proceda à vedação da estação. Já se estão também a dar passos significativos no contacto com proprietários, para compra dos terrenos onde se vai construir de raíz, o museu. 

SP: As ruínas podem ser visitadas? 

FS: Podem, mas ainda não estão definidos os acessos. Por isso, há tendência para andar por cima dos muros, o que não deve fazer-se. Basta ter alguns cuidados para não andar dentro das áreas de escavação e circular pela periferia das estruturas. SP: A estação é visitada com muita frequência? 

FS: Normalmente, é visitada por adultos, jovens que cresceram aqui na região e que saíram do país, que vêm mostrar a estação aos filhos. 

SP: As escolas fazem visitas? 

FS: Desde que começaram os trabalhos, do concelho de Águeda, têm sido poucas. Curiosamente, há mais visitas das escolas dos concelhos limítrofes. 

  
Câmara Municipal é actualmente a única financiadora 

Cinco mil contos por ano para as ruínas 

R: O que é que foi feito, até agora, no Cabeço do Vouga. 

FS: Em l996, depois de a Câmara ter estabelecido os contactos com o IPPCIIPPAR, e de eu ter sido convidado para dirigir os trabalhos, arrancaram as primeiras acções no Cabeço do Vouga. Claro que o aspecto que tinha o local, em 1996, nada tema ver com aquele que tem neste momento. A plataforma do cabeço da mina era um denso eucaliptal e matagal. Nessa altura, foi feito o corte da vegetaçao e iniciaram-se os primeiros contactos para a compra de dois terrenos, onde tinham sido feitas as escavações nos anos 40. 

SP: Quando é que começaram as primeiras escavações? 

FS: Em 1997, ao mesmo tempo que se deu continuidade às negociações com os proprietários dos terrenos. O processo ainda hoje continua. 

SP: Há entraves a esse nível? 

FS: Há algum atraso, porque os proprietários variam um pouco de opinião. Mas é necessário frisar que não há obstáculos de monta, pela sua parte. É evidente que para isso também contribui o facto de todo o Cabeço do Vouga ser classificado como imóvel de interesse público desde 1945. 

SP: E então? 

FS: Os proprietários estão limitados a construir o que quer que seja ou a colocar novo arvoredo. Isso desvaloriza os terrenos, apesar de eles terem todo o direito de não os querer vender. Contribui ainda o facto de estarem ligados afectivamente a Cabeço do Vouga. Há uma carga sentimental afectiva grande por parte dos proprietários em relação às ruínas. Esse é um dos factores que faz com que não dificultem o processo de aquisição dos terrenos. 

SP: Quem é que financia os trabalhos? 

FS: Neste mornento, é única e exclusivamente a Câmara Municipal de Agueda. Embora tenha tido uma classificação elevada em termos de projecção de investigação, a nível nacional, não havia verbas suficientes, daí que não foi atribuída qualquer verba. Quando terminar esta primeira fase, vamos concorrer aos planos plurianuais da arqueologia portuguesa. 

SP: Quanto é que a Câmara dispõe por ano? 

FS: O orçamento ronda os 5 mil contos, incluindo as verbas para aquisição de terrenos. 


Considera-se mais importante uma ponte, calçada ou viaduto 

Sobra o património e falta o museu arqueológico 

SP: Conhece bem o distrito de Aveiro do ponto de vista arqueológico. A esse nível, tem um património rico? 

FS: Penso que é fundamental um museu de arqueologia no distrito, que não tem que ser necessariamente em Aveiro, ou então pequenos museus monográficos, que é o que se pensa fazer no Ca­beço do Vouga. É lamentável que o distrito não te­ nha um museu de arqueo logia porque tem um património arqueológico espantoso. Justificava-se, portanto, um museu distrital a nível de arqueologia. 

SP: Como assim? 

FS: Era fundamental, não só por uma questão de arrecadar os materiais, mas principalmente por que seria sempre um pólo de investigação e desenvolvimento de apoio as próprias autarquias em termos de intervenção arqueológica. Num distrito como Aveiro, contam-se pelos dedos as Camaras que tem gabinetes de arqueologia e história, bem como as intervenções dos municípios em projectos de investigação. Isto não se deve à falta de património no distrito de Aveiro. 

SP: O que é que falta, então? 

FS: Talvez incentivos, que normalmente partem do investigador. Normalmente, faz-se investigação numa zona com a qual se tem afinidades. 

SP: Porque é que acha que não se avança para a criação do museu? 

FS: E urna questão de mentalidades. Consideram importante ter mais uma ponte, uma calçada ou um viaduto. Alguém tem de tornar a iniciativa. 

  
"Não faz sentido e é anedótrico" 

IPJ reduz drasticamente numero de jovens nas ruínas 

SP: Já disse que a equipa de trabalho é reduzida. No verão, no entanto, têm varios estudantes que colaboraram, não é assim? 

FS: Temos também a colaboração de professores a título gracioso e que têm dado um contributo excelente, porque são pessoas já com algum trabalho de campo. Os estudan­tes são integrados pelo Instituto Português da Juventude (IPJ), ao abrigo do programa de ocupação dos tempos livres. 

SP: Quantos são, normalmente? 

FS: Com a planificação que o IPJ tem para este ano, arriscamo-nos a ter aqui apenas dois, o que é perfeitamente anedótico. Não faz sentido, houve um corte radical, o que, para nós, é incompreensível. Significa um total desconhecimento da realidade e do que é o traba­lho arqueológico e, em particular, o Cabeço do Vouga. 

SP: Contactou, a IPJ paro saber a razão? 

FS: Não, porque apenas recebi essa infor­mação recentemente. 

SP. Este ano, vai, então, ser complicado... 

FS: Pois vai. Normalmente, a equipa rondava os vinte elementos. Este ano, vão ser sete, o que é uma redução drástica. Um jovem, nos primeiros quinze dias de julho, e outro, nos restantes mais vale não mandar nenhum, porque até para eles é mais complicado no que respeita à sua adaptação. Não é assim que se sensibilizam as pessoas para a conservação do património. 
  
Fernando Silva 
FERNANDO Augusto da SILVA é natural de Olhão e reside em Oliveira de Azeméis. É 1icenciado e doutorado em Arqueologia e Historia de Arte pe1a Universidade do Porto. 
Actualmente, é o coordenador do Gabinete de História e Arqueologia da Câmara Municipal de Águeda. Foi docente. do ensino secundário e superior e é, neste momento, director científico de dois projectos de investigação: Cabeço do Vouga e megalitismo do Baixo Vouga. Dirigiu vários projectos na área da arqueologia urbana e apoiou diversas Camaras Municipais.