Talábriga: o Estado da Questão
Origens | Talábriga na Guerra Lusitana | Historiografia de Talábriga |
Dados para a localização de Talábriga | Talábriga na Geografia de Ptolomeu |
A situação conjectural de Talábriga na zona da Branca | A localização de Talábriga no Marnel |
Vestígios romanos no Marnel | Estação Arqueológica do Cabeço do Vouga |
O território de Talábriga | A estrada Emínio-Talábriga-Cale
À chegada dos romanos, o litoral a norte do Tejo era ocupado pelos túrdulos, povo cuja cultura era essencialmente mediterrânica. Tal como no sul, mais efectivamente colonizado por gregos e cartagineses, também aqui o espaço se organizava em torno de cidades. Talábriga era a que ficava mais ao norte, já na região do Vouga. A sobrevivência de um subestrato mais antigo, de raiz indo-europeia, documenta-se no sufixo briga, que significava 'povoação fortificada'. Para o interior e para o norte o espaço era ocupado por povos com uma cultura mais primitiva, de tipo castrejo e pastoril e predominantemente de matriz indo-europeia.
Depois de expulsar os cartagineses da Hispania, os romanos esboçaram, no início do século II aC., as primeiras intenções de criação de uma administração provincial. Em 197 aC., foram criadas as duas províncias: Hispania Ulterior (a ocidente) e Hispania Citerior (a oriente). Assim se criavam as condições para um mais efectivo controlo e exploração do território dominado. Os excessos da dominação rapidamente levaram a protestos e revoltas dos povos indígenas.
As fontes registam confrontos entre romanos e lusitanos a partir de 194 aC. Em 155 aC., depois de um período de alguma paz, estalou a chamada "guerra lusitana". A morte de Viriato em 139 aC. foi um rude golpe sofrido pelos lusitanos, prenuncio da vitória romana que pouco mais demoraria a consumar-se. Em 138 aC., Décimo Júnio Bruto, nesse ano encarregado do governo da Hispania Ulterior, empreendeu uma grande campanha militar que se extendeu a todo o actual território português, e que marcará, verdadeiramente, o fim da guerra lusitana. Sabe-se que, durante esta campanha, Bruto fortificou Olisipo (Lisboa). Talábriga é a única cidade que se sabe por testemunhos escritos ter oferecido grande resistência à campanha de Bruto.
Veja-se o que escreveu Apiano de Alexandria: "Entre outras cidades que se rebelaram foi Talábriga a que mais vezes o fez. Brutus, voltando ali, os habitantes da cidade pediram-lhe clemencia e confiaram-se ao seu arbítrio. Em primeiro lugar mandou que lhe entregassem os transfugas dos romanos, os prisioneiros e todas as armas, além dos reféns; depois ordenou que saíssem da cidade com mulheres e filhos. Logo que acabaram de o fazer, cercou-os de tropas e arengou-os, dizendo-lhes que quantas vezes se rebelassem, tantas vezes mais violentamente a guerra lhes seria feita. Amedrontados e convencidos de que mais asperamenente se vingaria deles, Brutus acalmou-os contentando-se só com estas recriminações. Tomou-lhes os cavalos, mantimentos, dinheiro público e mais apetrechos bélicos, restituindo-lhes depois a cidade, o que eles já não esperavam. Depois de tantos feitos, Brutus voltou a Roma".
Argumentos contra a localização destes eventos na região do Vouga: [Oliveira, 1938]
Argumentos a favor: [Sousa Baptista,1948; Mantas,1996]
As primeiras conjecturas e controvérsias sobre a localização exacta de Talábriga surgiram no século XVI, perfeitamente integradas no movimento renascentista de culto das civilizações antigas e de procura dos seus vestígios. Insurgindo-se contra autores que faziam corresponder Talábriga a Talavera de La Reina, em Espanha, o lúcido antiquário Gaspar Barreiros defendeu em 1561 que umas ruínas, que encontrou em Cacia, próximo de Aveiro, eram o que restava de Talábriga. Nos dois séculos seguintes, os mais variados autores concordaram com a localização de Talábriga em Aveiro ou próximo, hipótese hoje excluida. Durante o século XX surgiram duas localizações alternativas: Branca (c. Albergaria-a-Velha) e Marnel (c. Águeda).
O problema da localização de Talábriga é considerado um clássico da arqueologia portuguesa. Em 1907, a propósito do citado texto de Apiano, Felix Alves Pereira escreveu : "Esta pagina da conquista da Lusitania é tanto mais importante quanto é, com igual individuação, a única que nos resta da historia escrita dos oppidos lusitanos, e, embora narre um só episódio da guerra da conquista, não deixa de ser elucidativa. Quando li este texto de Appiano, confesso que senti amargura por não podermos ainda ir conversar na região do Vouga com as ruinas da cidade onde estes successos crueis se desfiaram".
Tentativa de sistematização da historiografia de Talábriga: [Seabra Lopes, 2000a]
Outras referências: [Rocha Madail,1941; Ferreira Neves,1974 ]
Segundo o Itinerário de Antonino (sec. III dC.), Talábriga ficava a 40 milhas para norte de Emínio (Coimbra) e a 31 milhas para sul de Cale (Gaia/Porto). Estas distancias nao foram medidas em linha recta, como é óbvio, mas sim por estrada. Plínio situou Talábriga entre o rio Vouga e a cidade de Emínio. Da Geografia de Ptolomeu podemos extrair dados adicionais.
Partindo da hipótese de que estão certas as distancias do itinerário de Antonino entre Emínio e Talábriga e entre Talábriga e Cale, as ruinas de Talábriga deverão procurar-se na zona da Branca. Mais concretamente, Talábriga ter-se-ia situado na estação arqueológica de Cristelo da Branca, embora a sua mansio na estrada Olissipo-Brácara ficasse em Albergaria-a-Nova.
Argumentos a favor desta conjectura: [Alves
Pereira,1907; Souto,1942; Mantas,1996]
Sobre os vestígios em Cristelo da Branca: [Vaz,1982;
1983]
Contestação dos argumentos a favor desta conjectura: [Seabra
Lopes, 1997b; 1995; 1996a]
Sendo de 70.5 milhas a distancia em linha recta entre Coimbra e Gaia, não poderá estar correcta a distancia de 71 milhas atribuida pelo Itinerário de Antonino ao percurso entre Eminio e Cale (aliás, a distância tradicional por estrada entre Coimbra e Gaia ronda as 78 milhas). Nesse caso, deve atribuir-se maior importancia ao testemunho de Plínio, que obriga a situar Talábriga a sul do Vouga. O sítio arqueológico romano mais importante entre o rio Vouga e Coimbra é o castelo do Marnel, situado no alto de um monte encravado entre os rios Vouga e Marnel. Aqui deveria ficar Talábriga.
Argumentos a favor desta hipótese: [Seabra Lopes,1995; 1996a]
Deduz-se da Geografia de Ptolomeu (sec. II dC.) que Talábriga ficava a 43 milhas de Cale. É precisamente esta a distância por estrada (nomeadamente pela antiga estrada real) entre o Marnel e Gaia, facto que apoia fortemente a localização de Talábriga no Marnel. Convém notar que Ptolomeu utilizou, para marcar as coordenadas das cidades, um guia da estrada de Lisboa a Braga quase igual ao que foi reproduzido no Itinerário de Antonino, mas mais correcto. Pela Geografia de Ptolomeu se podem corrigir outros erros do Itinerário de Antonino.
Referências: [Seabra Lopes,1996b; 1997ac]
A configuração do castelo do Marnel apresenta dois terraços, correspondentes aos dois pontos culminantes do monte: o Cabeço Redondo, ou Cabeço de Vouga propriamento dito, a ocidente, e o Cabeço da Mina, a oriente. Especialmente na vertente norte, os terraços encontram-se circundados por dois outros terraços, em planos inferiores. Em todos os níveis, os terraços terminam em taludes de cerca de quatro metros de altura que, originalmente, deveriam estar, ao menos em parte, revestidos de muralhas. Destas apareceram vestígios a sul e ocidente. No terraço do Cabeço Redondo foram encontrados vários restos de construções, alinhadas de sudoeste a nordeste, ao longo de uma rua que ligava duas portas da fortificação. É provável que todo este aparato defensivo seja medieval, tendo pertencido à civitas Marnel. No Cabeço da Mina existe uma cisterna onde apareceram moedas romanas. Na encosta oriental do Cabeço da Mina, prolongando-se até às areias do Marnel, foram encontrados restos de cerâmica, grande quantidade de mós manuárias, bem como pedras aparelhadas e capitéis. As escavações realizadas por Rocha Madaíl em 1941 revelaram, entre outras construções, um sistema de muralhas de formato quadrangular, implantado no Cabeço da Mina, que poderão ser o resto do forum de Talábriga.
Desde 1996, a Câmara Municipal de Águeda tem vindo a fazer
escavações neste local. Estas escavações revelaram uma grande quantidade de
cerâmica comum da época romana, alguma sigillata e ainda metais,
nomeadamente fragmentos de peças trabalhadas em bronze, e vidros (PUBLICO, 8/3/1998). Embora os resultados
das escavações realizadas nos últimos quatro anos não estejam ainda publicados,
parece que até agora não se encontrou nada que revolucionasse os conhecimentos
sobre este local.
Referências: [Rocha Madail,1941; Sousa Baptista,1950; Mantas,1996]
Estação Arqueológica do Cabeço do Vouga
Ao longo do século XX, generalizou-se a todo o monte do Marnel, ou Monte Reguengo, a designação de Cabeço do Vouga que, tradicionalmente se aplicava apenas ao Cabeço Redondo e excluia o Cabeço da Mina. Apesar dos esclarecimentos de Sousa Baptista, é frequentemente no sentido mais lacto que o topónimo Cabeço do Vouga é hoje entendido.
A chamada "Estação Arqueológica de Cabeço do Vouga" foi classificada como Imóvel de Interesse Público por decreto nº 36383, DG 147, de 28/06/1947, c/ rectificação no DG 170, de 25/07/1947. Veja-se a página sobre esta estação no Inventário do Património Arquitectónico da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais.
Referências: [Rocha Madail,1941; Sousa Baptista,1950]
Analisando a distribuição dos marcos de fronteira e dos marcos miliários até agora encontrados, é possível reconstituir o território de Talábriga. Verifica-se que coincidia em boa parte com a medieval terra de Vouga, cuja sede era precisamente a civitas Marnel. Também isto parece ser um forte argumento a favor da localização de Talábriga no Marnel.
O território de Talábriga devia extender-se do rio Antuã até à Mealhada e do mar até às faldas serranas. Neste território se situam as modernas sedes concelhias de Águeda, Albergaria-a-Velha, Anadia, Aveiro, Ílhavo, Mealhada, Oliveira do Bairro, Sever do Vouga e Vagos.
Referências: [Seabra Lopes,1995; 1996a]
O segmento de estrada que ligava Emínio a Talábriga seguiria
pela margem esquerda do rio Cértima, passando por Vimieira e Sangalhos. A
travessia do Cértima far-se-ia na direcção de Barrô. A estrada evitaria a
várzea do Águeda, atravessando este rio em Óis da Ribeira. Entre Talábriga
(Marnel) e Cale, a estrada seguiria uma directriz próxima da estrada mourisca
medieval. Entre Emínio e Cale existiriam duas mansiones, situando-se uma
em Sangalhos e outra nas proximidades de Ul.
Referencias: [Seabra Lopes,1994; 1997a; 2000b]
As referências que se seguem são as referências consideradas essenciais sobre o tema. Para uma listagem de referências bibliográficas mais exaustiva, consulte a página sobre a historiografia de Talábriga.
Alves Pereira, F. (1907) «Geographia Protohistórica da Lusitania. Situação Conjectural de Talabriga», O Archeologo Portugues, vol. 12, pp. 129-158.
Barreiros, G. (1561) Chorographia de algvns Lvgares, Coimbra.
Ferreira Neves, F. (1974) «A Falsa Identificação da Cidade Luso-Romana de Talábriga com Aveiro», Arquivo do Distrito de Aveiro,vol. XL, pp. 161-177.
Mantas, V. (1996) A Rede Viária Romana na Faixa Atlantica entre Lisboa e Braga, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Coimbra.
Oliveira, M. (1938) «Talábriga», Arquivo do Distrito de Aveiro, vol. IV, pp. 117-120.
Rocha Madahil, A.G. (1941) «Estação Luso-Romana do Cabeço do Vouga. Terraço Subjacente à Ermida do Espírito Santo, ou da Vitória», Arquivo do Distrito de Aveiro, vol. VII, pp. 227-258 e pp. 313-369
Seabra Lopes, L. (1994) «De Portugal a Coimbra pela Estrada Mourisca», Estudos Aveirenses, no. 3, Aveiro, p. 97-100.
Seabra Lopes, L. (1995) «Talábriga: Situação e Limites Aproximados», Portvgalia, nova série, vol. XVI, Instituto de Arqueologia, Porto, 1995, p. 331-343.
Seabra Lopes, L. (1996a) «Talábriga e as Origens da Terra de Vouga», Beira Alta, vol. LV, 1-2, Assembleia Distrital de Viseu, pp. 169-187.
Seabra Lopes, L. (1996b) «As Coordenadas de Talábriga», Estudos Aveirenses, no. 6-7, Aveiro, pp. 229-244 (ainda em publicação).
Seabra Lopes, L. (1997a) Correcções ao Itinerário de Antonino entre Olissipo e Brácara Augusta, São João da Azenha, Setembro de 1997.
Seabra Lopes, L. (1997b) «O Problema da Localização de Talábriga», Munda, no. 34, p. 57-60.
Seabra Lopes, L. (1997c) «Itinerários da Estrada Olisipo-Brácara: Contributo para o Estudo da Hispânia de Ptolomeu», O Arqueólogo Português, série IV, vol. 13/15 (1995-1997), pp. 313-346.
Seabra Lopes, L. (2000a) «Tentativa de Sistematização da Historiografia de Talábriga», Al-madan, IIª série, nº 9, Centro de Arqueologia de Almada, p. 28-38. A página de notas historiográficas é uma versão preliminar desta publicação.
Seabra Lopes, L. (2000b) «A Estrada Emínio-Talábriga-Cale: Relações com a Geografia e o Povoamento de Entre Douro e Mondego», Conimbriga, vol. 39, Instituto de Arqueologia da Universidade de Coimbra, p. 191-258.
Sousa Baptista, A.S. (1948) «Talábriga», Arquivo do Distrito de Aveiro, vol. XIV, pp. 214-230.
Sousa Baptista, A.S. (1950) «Considerações sobre a Cidade Luso-Romana de Vacca, o Julgado e o Burgo de Vouga», Arquivo do Distrito de Aveiro, vol. XVI, p. 81-117.
Souto, A. (1942) «Romanização no Baixo-Vouga (Novo Oppidum na Zona de Talábriga)», Trabalhos da Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia, vol. IX, fasc. 4, Porto, pp. 283-328.
Vaz, J.L.I. (1982) «Primeira Campanha de Escavações em Cristelo da Branca», Boletim ADERAVE, no. 6, pp. 26-30 e no. 7, pp. 2-14.
Vaz, J.L.I. (1983) «Escavações no Cristelo da Branca. Breves Notas», Munda, no. 5, pp. 32-38.
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Página criada em 28/11/1997
Última actualização: 19/01/2001
Autor: Luís Seabra Lopes