Margarida Rebelo Pinto
Dos livros que li, e sendo que várias são as frases e as crónicas bonitas, esta é aquela de que mais gostei:
É
no instante exacto, nem um segundo mais cedo ou mais tarde, mas nesse exacto e
preciso instante em que me olhas antes de apagar a luz, que me sinto a rapariga
com mais sorte no mundo.
Lá
em baixo na rua chovem gotas de cores escuras , está frio e húmido, o vento
vira os chapéus de chuva do avesso como esqueletos desconjuntados e os bichos
da noite procuram conforto e conchego em mais um copo de vodka, numa linha de
coca ou nos braços de uma quase amiga que amanhã será uma quase desconhecida.
Lá
fora a vida continua, a vida não muda, as pessoas fogem delas próprias
para mergulhar no vazio de outros corpos, ou então fogem dos corpos que
não estão vazios para se encontrarem a si mesmas.
Lá
fora é o Inverno do nosso descontentamento, a vil e desoladora condição
humana à beira da loucura, presa ao calhas pelo fio da navalha, lá fora é o
mundo e eu fixo o meu olhar no teu no exacto momento que antecede o mergulho no
escuro, para me sentir protegida desse mundo e respiro o teu ar como se só em
ti encontrasse todo o oxigénio necessário à minha sobrevivência.
Cá
dentro, dentro de um mundo que é só nosso, a
música mistura-se com as nossas vozes, a lareira está sempre acesa, os
lençóis estão sempre limpos e esticados e o teu cheiro dissolve-se no meu. Cá
dentro há paz e sossego e doçura e segurança, há um tempo fora de todos os
tempos, sem relógios nem minutos, porque cada minuto é um dia e cada dia é um
mês e é por isso que sentimos que estamos aqui
há tanto tempo, como se o tempo fosse outro, e é!
Gosto
deste mundo tranquilo, aquático, etéreo e secreto, gosto de me perder nele
enquanto o sono não chega, gosto de te ver adormecido ao meu lado e de poder
continuar a olhar-te nos olhos mesmo quando estão fechados. O teu braço
pousado em cima do meu peito e a tua respiração regular embalam-me num sono
incerto e tardio, lá em baixo o comboio continua a passar e eu fecho os olhos
para depois os abrir, não quero dormir, não quero perder um segundo
- que para nos é uma hora - destes
instantes azuis que antecedem o mergulho no sono e anunciam a chegada provável
de um novo dia.
Tens uma doçura infantil que me desarma, um sorriso enorme que me
abraça, um olhar perdido do mundo que se encontra, quando encontra o meu mundo,
tens mãos de médico e coração de índio, tens a magia das pessoas tocadas
pela sorte e pela bem aventurança e tens me a mim. E mesmo que os dias no mundo
lá fora tenham relógios em vez de comboios e passem com a mesma vertigem com
que vivias antes de me conhecer, eu sei que o nosso tempo vai chegar sem nunca
chegar ao fim, nestes momentos em que a perfeição se cruza com a realidade e
nos transporta para um mundo só nosso.
Meu
amor... apaga a luz!!