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Paixões e Singularidades


 

 

A Paixão do In-Possível

Adélio Melo

(professor da Faculdade de Letras do Porto)

 

Este livro é a história da extinção de uma paixão: a da filosofia, e do nascimento de outra: a da filosofia”.

 

“Paixões e Singularidades”, de Rui Magalhães, é um livro da mais pura filosofia (nada “académico”, historicista, fora de quaisquer “modismos”). É, além disso, um livro sumptuosamente literário, de uma conceptualidade quase poética (por vezes metafórica...) mas que nunca incorre na quebrada linha da inconsistência. Ocupa, certamente, um lugar singularíssimo no quadro do pensamento filosófico.

Deve-se isto, em primeiro lugar, ao facto de em P&S se estabelecer uma conexão improvável no âmbito tradicional da filosofia (pelo menos como conexão intrínseca "conjuntiva") uma conexão que o próprio autor começa por admitir “impossível”: a conexão “entre a paixão e a ética”. E deve-se, em segundo lugar, ao facto de o livro ter uma motivação profundamente “autêntica”, uma motivação radicalmente “existencial”. Trata-se com efeito de um “livro-paixão onde o que realmente conta não é a análise, nem a conclusão, mas a vivência de cada página, de cada palavra e de cada emoção. (...) Livro, certamente, autobiográfico, onde a autobiografia se torna impossível” (p. 9).

Ora, somados estes dois factores, deduz-se que Rui Magalhães não poderia seguir a via abstracta das palavras e dos conceitos sedimentados no arquivo da linguagem (nem da linguagem filosófica, nem da linguagem do senso-comum – onde aquela conexão mais se afigura como improvável), mas situar-se antes num dentro-de-si onde o enlace entre a Ética e a Paixão um dia foi vivido ou desejado como possível (ou melhor como “in-possível”: mais adiante se verá o singularíssimo alcance desta palavra). Teria, em suma, de criar uma nova linguagem filosófica (para da vivência fazer conceito), e é isso que de facto se encontra ao longo das belíssimas páginas de P&S.

São inúmeras as deslocações semânticas aí operadas na conceptualidade filosófica tradicional (inventa-se de facto uma outra “língua”, uma outra filosofia), e por isso talvez não seja de todo em todo descabido considerar Rui Magalhães como um “logoteta” no sentido de Barthes (ao lado de Sade, Loyola e Fourier). Mas o que acima de tudo Rui Magalhães é, sem a mínima dúvida, é um filósofo “inactual”, agora no sentido de Nietzsche (sempre contra o tempo presente, sempre a favor de uma outra vida a vir). A lógica “passional” de P&S, com efeito, não é uma lógica deste “mundo”, não é a lógica a que obedece o mundo que habitualmente se toma por “real”. Daí o admitir-se “impossível” a conexão entre Ética e Paixão. Daí, no entanto, o acabar Rui Magalhães por considerá-la “in-possível” (coisa bem diferente de simplesmente impossível...).

I

O que se acaba de sugerir é que em P&S se traça um modo ou plano “possível” de existência que muito pouco tem a ver com os modos ou planos habituais. É isso que se trata agora de individualizar. Tarefa não fácil, diga-se de passagem, porque este livro, com o ser extremamente belo, é um livro extraordinariamente difícil (só as “belas almas” em algumas páginas se poderão inebriar...).

Tudo começa pela impiedosa delimitação daquilo que ordinariamente se toma por “real”, tudo começa por um meticuloso dissecar daquilo que são os modos ou planos reais da existência. Estamos no domínio da chamada “ordem real”, daquilo a que comummente nos subordinamos para sermos “realistas”, e aquilo a que nos subordinamos, vistas bem as coisas – mas di-lo Rui Magalhães –, é sempre a uma ordem moral do mundo, é sempre a “ordens”, é sempre a “mandamentos” (p. 31). É esse o domínio da Moral ou da Ética tal como habitualmente entendidas – fundam-se em princípios transcendentes ou imanentes, mas enquanto tal são sempre functores de “idealidades” (pp. 25-29) –, e é esse também o domínio do “espírito” e do “corpo”, em todas as acepções excepto uma (veremos qual) desta última noção: o corpo-objecto, o corpo rebelde, o corpo da sedução ou da conquista, o corpo do desejo e do prazer, o corpo mesmo do amor (pp. 100-113). A esse domínio, muito em particular, pertencem as figuras da Verdade, do Eu e da Identidade, as quais o autor, com algum humor negro, apelida de “pílulas nazis” (p. 125); – considera-as como instrumentos de “conquista” que depois são sistematizados “no direito, na moral, na estética” (p. 125).

Essas figuras, com efeito, são os grandes tópicos que estruturam e dão corpo aos vários aspectos e factores daquilo que tomamos por real, sendo este acto de tomar por real sempre uma operação epistemológica através da qual se instanciam modelos morais: “universalidades previamente constituídas” (pp. 25-6); os mandamentos, precisamente. Para sermos “realistas”, em suma, temos de proceder desta e daquela maneira e não de “outro” modo. Temos de ser identitários (de nos assumir como um “eu”), temos de admitir que identitário é aquilo que no real se ordena (coisas ou actos, relações de toda a espécie) – o contrário disso seria a pura anarquia, a pura inconsequência –, temos de assumir preceitos, leis, ou normas de toda a espécie, e só assim, em princípio, podemos aceder à verdade, a um comportamento tido por bom, justo, etc. Temos de ser Sujeitos confrontados com uma Exterioridade, e assumir todo o peso dessa Exterioridade (o chamado “real”, os tais princípios ou normas).

É assim que na ordem do chamado “real” vigora a grande oposição Sujeito/Objecto, mas ainda muitas outras que desde sempre foram trabalhadas pela filosofia: substância/ acidente, necessário/contingente, individual/plural, universal/particular, etc. Todas essas oposições são modos de dizer a realidade sob uma forma necessariamente “figurada” (codificada, representada, “teatralizada”), muito embora sejam esses modos – insista-se – que habitualmente se tomam por aquilo que é real (ou pela estrutura do real, no mínimo). Temos, em suma, que para os modos ou planos habituais (dominantes, dominadores) de existência, “reais, verdadeiramente, são as figuras, figuras sociais, físicas, epistemológicas. Tais figuras são, no fundo, mandamentos: a definição de vida reside no mandamento ‘não matarás’ e não o inverso” (p. 31).

Essas figuras, todas as figuras que constituem a chamada “ordem real” são enfim puras idealizações ou “imagologias” (estão para o real-real como a “imagem pública” do Sr. X está para a sua criada de quarto), e portanto acaba por concluir Rui Magalhães, com toda a propriedade, que “a ordem real é, assim, tudo menos real” (p. 29). A própria Crítica ou mesmo a paixão obsessiva, regulada pela fixação numa “imagem absoluta”, participam e acabam por reforçar aquela alucinada “ordem real” (porque se instituem sob a égide da verdade ou de um Eu identitário), acabam portanto por serem da ordem da pura Moral (pp. 51-2).

Como se poderá notar, corre todo este livro uma persistente e impiedosa denúncia dos idola de toda a espécie (até a Crítica, senhores, até a paixão como habitualmente entendida!).

II

É então que, como outro lado desse imenso domínio de (ir)realidade, é individualizado o modo ou plano privilegiado de existência. Estamos finalmente no domínio da conexão entre a Ética e a Paixão (mas de uma “outra” Paixão, da paixão sem nenhuma imagética obssessiva).

Esse domínio, como certamente já se pôde pressentir, será um domínio profundamente a-moral e a-tópico, será o domínio de uma certa Teológica ascética, mas que nada tem a ver com a Teologia nem com o ascetismo vulgarmente entendidos. Não será, é claro, o domínio do chamado “real”, mas também não será o do “possível”: uma vez que este último não passa duma projecção que mimeticamente n-uplica o primeiro (o possível é-o sempre por relação ao real, e segundo as normas-mandamentos do próprio real). Não será, por outro lado, o domínio do puro impossível (duma pura utopia). Será antes, já atrás o sugerimos, o domínio do “in-possível” (nem puramente possível, nem puramente impossível).

Não nos antecipemos em demasia, contudo. Sigamos devagar porque certamente nos esperam as areias movediças e portanto sem figura (sem figura substancial) do deserto.

Tal domínio, é claro, só pode situar-se fora das “pílulas nazis” acima referidas, bem como fora de todas as oposições metafísicas: além das anteriormente indicadas, oposições como real/ideal, matéria/espírito, imanente/transcendente, interior/exterior, activo/passivo, etc. A bem dizer, aliás, nem se trata de um domínio mas de um não-lugar, de um espaço puro onde podem ocorrer “acontecimentos” que rompem a continuidade e a substancialidade do que acima se designou por realidade (a “ordem real”). Esse espaço, que sobretudo nada tem a ver com as figuras do Sujeito e do Objecto que regulam, por exemplo, o desejo e o amor (“O sujeito do desejo ou do amor é sempre um sujeito para um objecto, um sujeito em função dum objecto”, p. 57), esse espaço, dizíamos, é segundo Rui Magalhães um espaço de emergência de puras “singularidades”. Eis, a este respeito, um trecho fundamental:

“Dir-se-ia que só em dois casos é possível que a paixão advenha: quando o sujeito levou a sua autoconsciência até às últimas consequências, isto é, quando desceu tão fundo em si mesmo que atingiu o vazio absoluto, ou quando nunca viveu a autoconsciência, quando nunca se tornou um verdadeiro sujeito do amor ou do desejo. Um tal sujeito torna-se um espaço possível para a singularidade. Não um lugar de receptividade, mas um espaço de acontecimento. Em termos gerais, dir-se-á que existe paixão quando o sujeito (do amor ou do desejo) se liberta da representação. É por isso que se torna necessário introduzir a noção de singularidade” (p. 58).

Para aceder à paixão é portanto necessário uma libertação da ordem da representação (uma ascese...), é necessário um romper com toda a “imagologia” que constitui a ordem do chamado real, com todas as figuras que se sedimentam no lugar da consciência ou da autoconsciência (“a consciência e sobretudo a autoconsciência é o maior obstáculo à paixão” - p. 58). É necessário por conseguinte romper também com todo o regime de oposições acima indicado (com a ordem moralizadora do real), e esse romper dá-se precisamente quando irrompe uma singularidade. “Por singularidade entende-se uma ocorrência, um acontecimento que não pode ser referido a nenhuma representação prévia nem a nenhum quadro de valores pré-configurado. A singularidade opõe-se tanto ao plural como ao individual, ao universal como ao particular; não é um sujeito nem um acontecimento que possa ser, directamente, referido à história do sujeito. A singularidade é a situação em que o sujeito deixa de ser auto-representar, abandona a questão da autenticidade, abandona a alternativa entre necessário e não necessário. A singularidade é um mundo – que não é real no sentido em que os objectos ou as representações o são, nem é possível no sentido em que o possível é o não real compatível com o real. Talvez a marca mais forte da paixão seja a transcendência da oposição entre caos e cosmos e da relação de possibilidade e de causalidade que ela expressa” (p. 58).

A noção de singularidade, assim delimitada, é próxima da que ocorre no pensamento de Gilles Deleuze, mas Rui Magalhães tem o cuidado de melhor a demarcar. Não se trata de algo com poder de génese dos Indivíduos ou Pessoas (de uma espécie de fundamento, embora não justificativo – assim é em Deleuze), não se trata também de algo com “uma certa tonalidade ideal” ou de uma categoria que recubra “uma nova forma do abstracto” (p. 66). Trata-se sim de algo em que ocorre a “simultaneidade da origem e do efeito” (p. 66), e trata-se sobretudo de um verdadeiro concreto, do “verdadeiro material” que impele à “indisponibilidade absoluta para reconhecer (e para se reconhecer) em qualquer representação. É, neste sentido, o vazio de imagens, não a imagem vazia” (p. 66).

A singularidade faz pois desvanecer qualquer “imagologia”, e implica nomeadamente o esvaziamento da imagem do Eu, da Consciência e Autoconsciência, dos Objectos, da coisidade das coisas, da individualidade dos indivíduos – o esvaziamento de todas as “ordenações” morais do real. Em suma: a singularidade, com ser “o verdadeiro material”, é o espaço do “não submetido” e, portanto, do “sujeito puro na sua in-possibilidade. O sujeito sem objecto, o sujeito que não é objecto para si mesmo e que só nessa medida é sujeito” (p. 66). Este sujeito será aquele que afinal possui uma autêntica “sujeitidade”, uma vez que fica desvinculado “do discurso do poder que enuncia o real“ como também “da oposição de um objecto”. É por tudo isto um sujeito verdadeiramente ascético: só pode emergir “na medida em que se liberta da enunciação do real, enunciação onde também ele é enunciado como real, como sujeito, como elemento do mundo, como oposto/dependente de um objecto, como Eu monádico ainda que com a possibilidade de estabelecer relações” (p. 66).

Ora o “sujeito” da paixão será precisamente este mesmo sujeito, um sujeito que nada tem a ver com qualquer pré-configuração, com qualquer universalidade ou com qualquer individualidade nesta fundada (com o regime clássico das oposições metafísicas, repita-se). Se se pode falar ainda de indivíduo, trata-se sim de um “indivíduo-singular” (tão singular como a própria “singularidade”), de um indivíduo que fica aberto a todos os micrológicos aconteceres, a todo um cenário de imprevisibilidade (o seu mundo será sem Lei e sem arqueologia, sem história), a todo um fragmentário “processo de administração sem conceitos” (p. 53). Processo fragmentário, dizemos bem, uma vez que, tendo tal sujeito ficado despojado da sua identidade, de toda a “imagologia” que formava e reforçava a sua consciência e autoconsciência, esse sujeito, esse “novo” sujeito, só pode ser uma espécie de rede instável de fragmentos e detalhes, de intensidades e de fluxos acentrados – uma “multiplicidade”, em suma. E é nisto, aliás, que se distingue o sujeito da paixão, tal como a concebe Rui Magalhães, do sujeito, por exemplo, da paixão obsessiva, da paixão dominada por uma “imagem absoluta”. “A grande diferença entre a imagem absoluta e a paixão reside no facto de que a primeira é identitária e a segunda plural. Enquanto a imagem absoluta unifica, a paixão, pelo contrário, é uma pluralidade de detalhes, de fragmentos que podem surgir, em certos casos, associados a uma imagem ideal e de contornos pouco definidos, mas que não anula a pluralidade” (p. 52). É isto que distingue o sujeito da paixão daquilo que habitualmente como tal se designa, mas é isso mesmo que o distingue também de outros sujeitos como os do amor, do prazer ou do desejo, do espírito ou do corpo nas suas várias imagéticas a-passionais (o corpo-objecto, do prazer e da dor, do desejo e da sedução, o corpo narcisista e o corpo mesmo do amor).

E estamos então, com tal distinção, precisamente no advento da situação ética, de uma situação em que a única norma é o deserto das normas, de uma situação em que o único princípio moral é princípio nenhum, de uma situação em que o paradigma epistemológico (para proceder, avaliar, ser verdadeiro, ser justo, ser estético, etc.) é princípio nenhum. É isto mesmo o que diz Rui Magalhães, lapidarmente: “O carácter fragmentário do universo da paixão (fragmentário do ponto de vista social, na medida em que decompõe a continuidade) coloca o indivíduo na situação de ter de organizar esses fragmentos sem que, todavia, disponha de critérios externos (ao acontecimento), transcendentes, para operar nesse sentido. É isto a situação ética” (p. 54).

Situação ética, mas em que medida? – Que a paixão, mesmo como habitualmente é concebida, se aproxima (se aproxima, pelo menos) da paixão segundo Rui Magalhães, isso pode aceitar-se. Que a situação ética, por outro lado, pode ser definida como o anverso da obediência a quaisquer universais, essências ou normas pré-estabelecidas (sejam elas espirituais, históricas ou biológicas), esse o caso, por exemplo, de Giorgio Agamben (A comunidade que vem, Ed. Presença, p. 38). O segredo a deslindar, aquilo que faz a singularidade de Rui Magalhães, está pois na conexão entre Ética e Paixão. Para a ele aceder, porém, temos de continuar a ser vagarosos, temos de procurar entrar com dança de serpente no coração do deserto. Já o sabemos, aliás: aquilo a que temos de aceder não se encontra no domínio do real nem do possível, mas no paradoxal domínio do “in-possível”. Paradoxal porque para além de qualquer “doxa”, paradoxal porque para além ou aquém de qualquer “comunidade constituída”. Domínio a-moral e a-tópico, em suma. 

III

A paixão, naturalmente, acontece no quadro duma “singular” relação com o “outro”, mas verdadeiramente não se trata duma “relação”: uma vez que a categoria da relação, entendida ao modo habitual, é forçosamente um nexo entre coisas ou sujeitos substanciais, identitários (uma relação “externa”). Ora já vimos que o sujeito da paixão é tudo menos que substancial ou identitário, e portanto também não o poder ser o “outro” que com ele se entrelaça. Não pode, por outro lado, ser um “Outro” absolutamente transcendente (um Outro abstracto como Deus, a Humanidade ou o Ser) – nem Levinas nem Heidegger são para aqui chamados (pp. 129 ss.) –, não poder ser um “outro” carregado da história e da tradição ou norma do real (sem o que não teria sentido a lógica das singularidades). Trata-se enfim dum “outro-único”, de um “outro privilegiado”, dum outro que só pode aparecer – se aparecer – num plexo de singularidades. Vale a pena, a propósito, transcrever a seguinte passagem, belíssima:

“Na história invisível do corpo, do meu lugar, daquele corpo que suspeito infinito, existe uma área raramente disponível à discursividade que é espera pura. O mesmo com o espírito. Esta espera, configurada como lugar não geográfico – porque não referível a nenhuma mapeação do corpo (ou do espírito) – é o verdadeiro, o único lugar do outro. Este outro não é o Outro que incarna a transcendência, nem o outro que enuncia a sujeitidade própria. Não é, também, a forma do desejo ou do prazer. Não é, ainda, o lugar de Deus, pura transcendência, pura aspiração. É, contra todas as evidência, o lugar do outro-único, do outro-real, transcendente-imanente, o outro que está reservado ao eu desde o princípio dos tempos, que determina a autêntica emergência do tempo do sujeito, que, paradoxalmente, suspende todos os tempos menores que constituem a história visível do sujeito. É o lugar da alma” (p. 120).

O “outro” da paixão como “lugar da alma”, como aquele que suspende “a história visível do sujeito”, eis a grande nova, eis o que faz a própria singularidade da paixão segundo Rui Magalhães. Com efeito, a essa história visível do sujeito pertencem todas as imagologias, pertencem o desejo, o prazer, o amor e mesmo a paixão sob a forma duma imagem obssessiva, absoluta. Ora, Rui Magalhães não nega, em bom rigor, que a paixão do “outro-único”, do outro privilegiado, nada tenha a ver com esses “sentimentos” (pode mesmo com eles coexistir; coexiste o mais das vezes), não afirma tão-pouco que deles difira pela “constituição de um sentimento específico ou de um lugar próprio”. Difere sim pelo modo “como esses sentimentos são assumidos”, pelo modo como eles “originam situações” que na linguagem corrente se chamarão “estados de espírito”, mas que Rui Magalhães prefere apelidar “modos da alma” (p. 57) – admitindo certamente que os estados de “espírito” são sempre indentitários, da ordem do representativo, da história, do “imagológico”.

Modos da alma? A alma? (Oh que coisa hoje tão “inactual”!). Ora esse “aliquid” é precisamente, para Rui Magalhães, o lugar-não-lugar que resulta da “singular” silenciação do corpo e do espírito (mas silenciação que fala, que se dá em escuta), da “singular” ascese sobre todas as representações, da “singular” derrocada do edifício das demais oposições que desde sempre trabalharam a cultura ocidental e a respectiva conceptualidade filosófica. A alma, em suma, será aquilo que nasce do encontro com o “outro-único”. E enquanto tal é “uma dádiva, uma anunciação sem objecto. Este outro é, verdadeiramente, Deus, o Deus imanente à pura transcendência, isto é, àquela que não é pensada como transcendência” (p. 120). Por outro lado: não pertencendo “à história individual do sujeito” (não pertencendo à “ordem real”, a uma ordenação do real codificado, moralizado), o encontro com o “outro privilegiado” pertence é à “objectividade cósmica, ao universo da energia, da justiça e da verdade”. Implica, no entanto, a “radical reformulação destas categorias”. Não é “um encontro psicológico mas uma revolução cósmica. Uma emergência do Bem, da palavra de Deus” (p. 139).

Torna-se agora compreensível, certamente, por que acima falámos a propósito de P&S duma Teologia a-moral e ascética. Duma Teologia sem qualquer Deus transcendente ou passível de representações (teorizações, etc.), mas duma Teologia onde o “outro-único” não deixa de ser Deus. Ou melhor: ocupa uma espécie de lugar de Deus, mas de um Deus que em vez de me individualizar me desindividualiza, de um Deus que em vez de me dar corpo ou espírito (de me dar uma escrita, uma História), me dá alma. De um Deus, em suma, que me pode “animar”. O “outro-único”, com efeito, enquanto “outro privilegiado”, será menos da ordem da “amantação” do que da “animação”. Será um “aliquid” que me pode aduzir “a sensação de expansibilidade na plenitude” (p. 120). Será ele que pode fazer com que eu me torne “melhor”, no energético sentido de “adquirir força” (p. 78).

Veremos mais adiante como tudo isto só pode suceder no interior de um peculiar quadro que é o da “compreensão” (e que Rui Magalhães entende duma forma singularíssima): “a compreensão não pode ser um acto subjectivo, mas um acontecimento. Nesse sentido, acrescenta algo ao mundo” (p. 138). 

IV

O encontro com o “outro-único” é uma emergência “do Bem, da palavra de Deus”, disse-se acima. Mas se este Deus não é o Deus de nenhuma Teologia instituída (teorizada, representada, moral), também esse Bem não é nenhum Bem da ordem dos valores vigentes, da “ordem real” da moral, da ordem do “imagológico”. Será precisamente algo que pode ocorrer nas linhas fragmentárias da reverberação duma singularidade, de inúmeras singularidades, algo que como que automaticamente se patenteará no quadro da “animação”, no lugar da alma e segundo os “modos da alma”. Todavia, já o dissemos acima, a grande atitude para que tudo isso possa acontecer, a grande atitude para que as próprias singularidades possam irromper, a grande atitude para que o “outro-único” se torne mesmo “único”, mesmo singular e privilegiado (sem universais nem conceitos, sem qualquer cálculo moral), essa grande atitude, dizíamos, é a da “compreensão”. Vale a pena, a propósito, transcrever mais um belíssimo texto, onde, sob o tópico da alma, se reúnem todos estes tópicos (praticamente, aliás, todo o âmago do livro):

“A paixão desloca as imagens, desnatura-as. Desmonta a dualidade corpo/espírito. A paixão é da alma. É alma.

A alma é o eu. Nem corpo nem espírito. Mas nome que se ganha (e que não é, todavia, portável pelo sujeito). Não ligação. Não escolha. Não opção. Mas existência. Não conhecimento: não sujeito, não objecto, mas facto, acontecimento.

Não contínuo, mas turbilhão.

Da alma não existe regime de verdade; não há verdade da alma. A alma é a condição de verdade única, isto é, da não verdade porque sem critério. Da vida plenamente autêntica, precisamente porque sem verdade. (...)

Só na paixão a alma existe plenamente. Sem se submeter ao corpo ou ao espírito. Fora da paixão, a alma é ponte, é dependência, é ilusão de si e do outro. Ilusão da possibilidade da verdade, ilusão do possível (que é real).

O corpo da paixão não é, também, o do desejo nem o do prazer, mas a paixão tornada corpo. Portanto, nem falta, nem juízo, nem amor (ou ódio) da lei. Simples visão do outro em mim e de mim no outro, cruzamento de sensações sistematicamente acentradas, milagrosamente suspensas, tão próximas, todavia, do lugar da nomeação. Esse corpo respira através da alma e vive a eternidade na implosão celular” (p. 119). 

“Simples visão do outro em mim e de mim no outro, cruzamento de sensações sistematicamente acentradas, milagrosamente suspensas...”, eis aí, no essencial, o que é a “compreensão” passional segundo Rui Magalhães. Só sob essa lógica “visional” (mas que em bom rigor pertence ao domínio do invisível; pertence mais ao regime do “tive uma visão...”), só sob essa lógica, dizíamos, se formará um “nós” que em rigor não decorre da relação ou junção dum Eu e de um Tu, mas duma espécie de “mi-tigação”, de uma espécie de “mi-tigo” onde dois (ou mais?!) se despojam do peso de si mesmos sob o jogo e vivência da mais pura autonomia.

Será essa lógica fácil, será uma lógica do possível? – Não é, visto que não se trata duma lógica do “real”. É sim a lógica do “in-possível”, duma nova linguagem, duma linguagem ascética, intensiva e de “puros símbolos” que muito se aproxima do “sublime” kantiano (p. 92). Trata-se de uma lógica e de uma linguagem, em suma, para que se torna necessário inventar um novo alfabeto: “O nós é a face objectiva da paixão. In-possível como ela. (...) Dizer nós é começar a soletrar um alfabeto desconhecido, absolutamente irreconciliável com qualquer imagem” (p. 136).

Seja lá como for, só no quadro de tal lógica, só no quadro da linguagem do “nós in-possível” pode ocorrer a liberdade – e mesmo a justiça –, e só no quadro dela, sobretudo, se pode inteligir a atrás referida “situação ética”. Ética & Paixão, por conseguinte.

V

Como Levinas, Rui Magalhães aceita que só o ser ético permite alcançar a liberdade (p. 122), mas a Ética em causa, já o sabemos, decorrerá ou será coetânea do acontecimento da Paixão, de uma mi-tigação com o “outro-único” ou privilegiado (não com um Outro absoluto ou transcendente). Neste sentido vem desde logo um dito assaz lapidar: sendo “autónomo” cada um dos elementos da mi-tigação (autónimo mas não autológico, isto é virado para si, egológico ou substancial), não se dirá que a minha liberdade cessa lá onde a do outro começa, mas antes que “a minha liberdade começa na liberdade do outro” (p. 127).

Tal liberdade, contudo, nada tem a ver com o conceito habitual de liberdade, tal liberdade nem sequer é um conceito pois se o fosse seria “auto-contraditório”, suporia um quadro identitário de significação e, logo, “um conjunto de caminhos pré-determinados” – uma moral (p. 53). Tem antes a ver com o “caósmico” domínio das singularidades, do não imagológico, do “in-possível” onde todas as tecnologias ou maquinarias virtuais do corpo ou do espírito se dissolvem (todas as maquinações que possam submeter – e logo substancializar – um Eu ou um Tu). O Ético, com efeito, “significa (...) a anulação de todas as mitologias do corpo, a desmontagem de todas as máquinas virtuais, a insignificância absoluta do possível: é a realização do in-possível onde o corpo se apaga, o espírito, e só a alma existe. A liberdade não é a possibilidade do possível mas a presentificação do impossível” (p. 122).

A presentificação do impossível, entenda-se, por relação à “ordem real” do mundo. E por isso é que essa presentificação, isso que impele para um “outro” mundo (porque a “ordem real” não anima, tolhe, anula qualquer ins-piração), acaba por redundar (poder redundar) na “realização do in-possível”, na realização de um peculiar modo de liberdade (um modo de animação, um “modo da alma”). Mas para que o “in-possível” assim se realize, para que se possa aceder a esse peculiar modo de liberdade, para que se suspendam todas as “imagologias” morais ou pré-condicionadoras, o que eu tenho é de facto de compreender o “outro”, e esta compreensão – já o fizemos entrever – nada tem a ver com a solidariedade entre verdade, interpretação e compreensão entendidas classicamente: como relações com uma pura exterioridade (p. 136). A exterioridade, com efeito, é o domínio da coesa correlação entre o real, o possível e o puro impossível (as categorias com que temos de lidar para sermos “realistas”, que não “passionais”...). Ora a mi-tigação supõe precisamente o quebrar dessa exterioridade para dar vida a uma “relação” que igualmente quebra a rede oposicional exterior/interior, activo/passivo, etc. Ela supõe, ao mesmo tempo, a suspensão de quaisquer juízos morais, de qualquer crítica, deixando antes que se abra o espaço para o acontecer da singularidade a-representativa (sem imagens prévias, sem caminhos pré-determinados) do outro-único-em-mim-e-de-mim-único-no-outro. Será isto do domínio do possível? Não é. Já sabemos, mas nunca é demais repeti-lo, que é do a-tópico domínio do “in-possível”. Isto é, pode precisamente acontecer num quadro de singularidade e de despojamento pessoal (e sempre segundo a alma, segundo um “modo da alma”).

“In-possível” que o seja, só assim poderemos escutar a voz do outro num regime de pura “unicidade”, e portanto só assim poderemos ser verdadeiramente éticos. Éticos e justos, à margem de qualquer paradigma de responsabilidade, uma vez que esta, tal como o desejo, a conquista, a sedução ou o prazer, não são senão modos de ser e de reforço de um Eu autológico ou autista. Ser justo, em suma, “só na compreensão se torna viável” (p. 141).

Escutar a voz do “outro-único” será enfim escutar a voz do Bem e de Deus (não das imagens do Ser ou da História), mas neste sentido: será escutar a voz daquele que, por único ser, e por compreender eu essa voz num regime de pura “unicidade”, em todos os seus detalhes e fragmentos, em todas as suas tonalidades e intensidades (não reportada a qualquer “todo” idealizado ou abstracto, antes num regime de absoluta “singularidade”, em suma), como que passa a incarnar o próprio ser-bom e o próprio ser-Deus, sem nenhuns condicionalismos “a parte ante” (sem sombra de moralina, crítica transcendental, sem quaisquer pré-conceitos, sem qualquer “imagologia” prévia). Ora, admitindo-se ser essa mesma a posição do outro por relação a “mim-único” no regime passional da compreensão, forçoso é concluir que todo este cenário (cenário “in-possível”...) não deixa de ser repassado por uma lógica “impecável”, por uma lógica férrea. Com efeito, se a qualquer um acontecer estar em mi-tigação passional com outro, segundo os quesitos de Rui Magalhães, certamente nunca lhe ocorrerá dar a esse outro uma “pílula nazi”, uma vez que todos os impulsos de tal outro serão impulsos seus, todos as razões serão igualmente suas, todos os detalhes e fragmentos em que ele se multiplique situar-se-ão afinal no plano de uma “u-nidade” (não duma “identidade” autológica ou “totalitarismo”...) em que verdadeiramente não há um Eu e um Outro, mas um puro “aliquid” simultaneamente imanente-transcendente, simultaneamente activo-passivo, interior-exterior, etc. (nisso consiste a mi-tigação, afinal). É neste quadro que se deve situar o que acima se disse sobre o tópico da liberdade (começa a minha onde a do outro começa...). E estamos então em pleno âmago duma Ética possível (duma ética “in-possível”), de uma Ética que, de facto, muito pouco tem a ver com as Éticas de que hoje tanto se fala (ou melhor: que tanto hoje se nomeiam para efeitos de “reconhecimento”, num prolixo nominalismo sempre judicativo, moralmente “justiciativo”, pretensamente “veritativo”, num errante festim de puras Exterioridades...).

A Ética de Rui Magalhães é pois uma Ética da “compreensão”. Ao mesmo tempo, com o sê-lo, é uma Ética da Paixão e uma Paixão da Ética. É, enfim, uma ética-paixão da pura liberdade, uma paixão-ética de puro “ascetismo” (o ascetismo, aliás, é definido em P&S de modo análogo ao da “estética” passional: não como lugar das entificações e da identidade ou reforço do Sujeito – duma qualquer “objectificação”, do peso ou ilusionismo daVerdade –, mas das singularidades e das fulgurações, dos fragmentos e da pluralidade do Eu – p. 84; pp. 95-6). Em resumo: “Pela paixão, o sujeito escapa à sujeitidade, à condição de oposição a um objecto; escapa à inevitabilidade da atenção e da apreensão para entrar no domínio da compreensão. Que não é impositiva; que não visa um objecto. E o outro escapa à ordem, à acção de reconhecimento, ao cansaço da verdade” (p. 65).

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Assim será, mas dito isto cumpre que não sejamos ingénuos. Em todos os livros em que se encontra um autêntico pensar, encontram-se também inúmeras dificuldades. Ora a regra cumpre-se aqui, integralmente. E a dificuldade maior, quanto a nós, situa-se numa espécie de alternativa: ou o “outro-único” de Rui Magalhães é mesmo um “único” na forma d’uma pessoa, e nesse caso não se vê como da mi-tigação resulta necessariamente um modo de ser ético extensivo (a uma pluralidade de outros-únicos), ou então o outro-único é uma espécie de “qualquer” no sentido de Agamben, e nesse caso é quase fatal estarmos no domínio de uma “comunidade” (ainda que comunidade “a vir”, mas que em qualquer dos casos, por sê-lo, facilmente decai na “ordem real” da moral, da representação, das imagologias e dos mandamentos).

Terá esta alternativa a ver com a categoria do “in-possível” de Rui Magalhães? Ou trata-se antes de uma pseudo-alternativa, de uma alternativa apenas gerada pela interpretação que aqui foi seguida (há outras, a estética do livro é “passional”...), de uma alternativa que antes esconde outros problemas maiores de “Paixões e Singularidades”?

Seja lá como for, é na categoria do “in-possível” que se centram todas as linhas teóricas deste livro, também todas as suas dificuldades, e só ela, só por si, mereceria todo um estudo à parte (tal como aliás a noção de “alma”). Seja lá como for, em suma, já por várias vezes o sugerimos: trata-se da categoria que ilumina a singularíssima Teologia passional, a-moral, a-tópica e ascética que se ostenta em P&S (a “disciplina” de que o livro trata, afinal).

 Essa Teologia, sabemo-lo perfeitamente, não é uma Teologia deste mundo, não é uma teologia da “ordem real” (não é tão-pouco para esta...), não é a Teologia de qualquer Deus representável nem de qualquer Deus “representativo”. É sim a Teologia (também se poderia dizer Metafísica...) de um modo ou plano “possível” de existência. De um modo ou plano “in-possível” de existência...

E porque assim, porque Rui Magalhães atribui um carácter “autobiográfico” a “Paixões e Singularidades”, porque certamente algum dia se confrontou ou aspirou confrontar com esse possível “in-possível”, porque certamente foi essa uma “vivência” análoga à daqueles que como “santos” se nomeiam (mas tão diferente, senhores!), não é de todo em todo improcedente que eu termine por declarar aqui, solenemente (e numa atitude da mais rigorosa “ética”...), serem estas as “actas” da Paixão segundo S. Rui Magalhães (“há um deserto do ético, um verdadeiro deserto porque é nele e só nele que o sujeito perece de modo definitivo” – p. 78).