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Infinito
Singular – Sobre o não-literário de Rui Magalhães Cecília Basílio
Começo por agradecer a vossa presença e por reiterar as palavras da Maria Celeste Alves sobre o privilégio que é, para todos os que se empenharam em dar existência à Textiverso, inaugurá-la com um novo livro do Professor Rui Magalhães, o quinto que o autor – filósofo, mas também poeta – publica no género ensaio. Com a explicitação de ser o não literário o domínio de que trata este livro, o título Infinito Singular, na sua poeticidade intrínseca, restitui ao “não literário” a relevância que a posição privilegiada ocupada pela linguagem lhe retira, quando – e passo a citar as palavras de Rui Magalhães a este respeito –, “a grande questão – talvez a única verdadeira questão – colocada pelo literário (entendido como não-literário) é a dos modos como a escrita se liga com a vida” (p. 101). É necessário, adverte-nos o autor, “pensar o problema de como naturezas distintas podem interferir mutuamente” (p. 104). E é nesta linha de reflexão que nos abre que, desconstruindo as noções de vida e texto, nos dá a ver uma coisa e outra não como duas naturezas distintas (se bem que sejam de natureza distinta os objectos que habitam um e outro universos), mas como diferentes “matérias-suporte de acontecimentos”, o que, consoante o explicita, ao mesmo tempo “simplifica e complica a questão” (p. 142). Nesta perspectiva, o “não literário” surge Passo a citar, da página 88, de onde é retirado o excerto escolhido para
a contracapa do livro:
Mais exactamente a isso que
emerge, mais ou menos informe, porque não é susceptível de se constituir na
experiência comum. Nasce dela, de um seu momento e prolonga-se numa outra ordem
de espaço e de tempo. É neste sentido uma experiência de paixão.” (p. 89) Rui
Magalhães
abre assim um horizonte para além do próprio horizonte do
acontecimento
enquanto limite, um horizonte que é essencialmente e ao mesmo
tempo dinamicamente
aberto sobre o “não literário”, o
“não filosófico”, e, em última
análise, o “não-ser”.
Se estou a recorrer a termos marcadamente do autor, continuarei a
apropriar-me das
suas palavras para precisar o sentido em que faz uso destas
denominações pela
negativa. Assim, “o ‘não ser’ (que não
é, evidentemente, o nada) é visto “como
instância sumamente ontológica, como ‘lugar’
da resistência, da criação, como
lugar, afinal, da ‘denúncia’ de todas as
metáforas, de todas as
linguagens.” É toda uma nova
ontologia que informa e subjaz a este "não literário" que assim é anunciado
no título como questão tratada e a tratar neste livro. Digo tratada e a tratar porquanto são claramente reconhecíveis no Infinito singular os traços desta nova ontologia
que será a matéria a tratar no que com todo o rigor Rui Magalhães chama
“tratados”. Estou, é claro, deliberadamente a jogar com o sentido dos derivados
de “tratar” enquanto designação da escrita que o autor tem em mãos e que como
tal se anuncia, ou seja, simultaneamente um fechamento – matéria tratada – e
uma abertura ao “a tratar”. Disto mesmo dá conta a preposição “sobre”,
correspondente ao über alemão – e
estou de novo a parafrasear o autor – a orientar o olhar para além e para o
outro lado, para o lugar de onde irrompem os acontecimentos no seu puro
acontecer. Nestes “tratados” Rui Magalhães tornará para nós mais precisos os
traços desta nova ontologia que já
Tal como na
leitura da sua obra anterior, Paixões e
Singularidades, sinto a todo o momento, Resultando de um
olhar tão apaixonado quanto apaixonante, não é sem razão que Infinito Singular surge nesse horizonte
em que ensaio e poesia impossivelmente se tocam. Infinito Singular continua a responder ao apelo do por vir audível em Paixões e Singularidades, apelo que se continua a fazer ouvir ao
longo destas páginas conferindo-lhe esta sua natureza intrinsecamente poética. Infinito Singular é, pois, um livro de extrema relevância não apenas para a
área disciplinar da Filosofia, mas também e sobretudo para outras áreas, muito
em especial para a Literatura e Teoria da Literatura, e mesmo para a Linguística
no que seria desejável que esta fosse e de que infelizmente parece continuar a
querer afastar-se a largos passos. Na sua Introdução à Hermenêutica Rui Magalhães torna-nos
acessível a profunda e sólida fundamentação teórica subjacente tanto a Paixões e Singularidades como a Infinito Singular. Tal é a rocha consistente
e firme sobre que erige o edifício cuja altura lhe permite avistar esse pressentido
novo horizonte ontológico de que Infinito
Singular constitui uma sempre nova e maior aproximação. Infinito Singular – sobre o não literário consta de uma trilogia de
que dão conta os títulos de cada uma das suas mutuamente implicadas partes: “Infinito
Singular”, “Vida e Literatura” e “A voz nua: a palavra, o corpo, o silêncio”.
Tem, em lugar de um Prefácio ou mesmo de uma Introdução, um texto em forma de
carta, em que se conjugam o género epistolar tradicional e o que Derrida
introduziu Privilegia-me
Rui Magalhães ao dar o meu nome à enunciatária directa desta Carta sobre o Infinito e o Limite, respondendo
a perguntas que se me colocaram na tentativa sempre reiniciada de uma
aproximação da “compreensão”, como Rui Magalhães a entende, daquilo mesmo que
me dá a ver. Nesta carta encontro, pois, uma apaixonante apresentação do que é
dito e do “a dizer” a cujo apelo Rui Magalhães plenamente responde nesta
trilogia. Direi que me fez sentir aquele “estremecimento” de que fala Rilke
“quando uma coisa feliz cai”, porventura a manifestação desse “júbilo da
singularidade” no “interior do acontecimento” de que fala Rui Magalhães no
passo que li no início. Júbilo. Uma
força que depressa se descobre não ser sedução, mas fascínio, conduz a
sucessivas releitura(s) de Infinito
Singular no sentido da almejada aproximação da compreensão do que a todo o
momento pressentimos precedendo-nos e envolvendo-nos, adiantando-se-nos sempre.
Tal será o que Rui Magalhães chama “a voz nua” ou “compreensão pura”. É também no sentido em que nos fala de “fascínio”
que estou a fazer uso do termo, ligando-o, naturalmente, ao júbilo e ao desejo
de o experimentar. É também com isto que tem a ver o “infinito singular”. Porque
é de fascínio que se trata, como no-lo dá a sentir Rui Magalhães quando nos
fala da “única coisa que está ao nosso alcance”, que é “suspeitar”, em face do
que, no fascínio, suplanta o desejo e o seu objecto, aquilo mesmo a que chama,
do mesmo modo, “Infinito”, a preencher o espaço impreenchível entre uma coisa e
outra. Passo a ler, das páginas 13 e 14:
É essa ausência, essa falta plena, que nos encosta ao nosso
próprio limite. Porque essa falta – que “colocamos” no “objecto” – é
essencialmente nossa. Uma falta que não é de nada. Que nada pode preencher
porque é ela que nos constitui. Por isso, o fascínio é mais do que o desejo. Há
entre ambos uma deslocação inordenável, um “espaço” impreenchível. “Infinito” é o nome, simultaneamente, desse espaço, do
fascínio que nos lança para ele e da ilusão de um objecto que o corporiza. O
corpo como ilusão – o texto, a obra, o mundo – é o verdadeiro suporte de toda a
existência fundada na aceitação e no seu correlato, a transgressão. (...) Suspeitar (essa suspeita é o primeiro motor do desejo que
não é de nada) é a única coisa que está ao nosso alcance. É nessa suspeita que
acolhemos o nosso excesso e a nossa falta, o mesmo é dizer, esse desejo imenso
de tocar, de transgredir, de desconstruir, de ir “além” e mesmo de “repousar”
numa “verdade”, numa plenitude.
É este fascínio
que motiva o grupo de estudo que se está a constituir com o nome Galateia, com
toda a razão de ser proposto por Rui Magalhães. Trata-se de um grupo, ainda em formação,
do qual, queira-o ou não, Rui Magalhães
é a “alma”. Mas “alma” é o nome de algo de tão intrínseco ao pensamento do
autor que corro o risco de o estar a usar abusivamente, porquanto é da “alma” na
mais profunda e fecunda concepção da sua essência dinâmica que tratam Paixões e Singularidades e o Infinito Singular.
Se coube à
Textiverso a publicação desta quinta obra filosófica de Rui Magalhães, acalento
a esperança de que seja também a Textiverso a feliz escolhida para a publicação
de um quarto livro de poesia, passados que são mais de vinte anos sobre as Sombras Paralelas. É com um poema
inédito de Rui Magalhães que, se mo permitir, vou terminar esta minha
necessariamente breve apresentação de Infinito
Singular. Um poema que nos propicia o que só verdadeiramente a poesia nos
pode oferecer – e volto a citar: “essa experiência da não repetição, do carácter
absolutamente único de cada coisa que ocorre do outro lado, mesmo que existam milhões de outras
semelhantes”. Do poema
"Se fosse de outro modo...”, que, tal como Infinito Singular, olho como um tríptico, tomo apenas uma face,
central, do ponto de vista de que olho agora:
Não percorrem uma voz nem um
corpo nem um espírito. Quase tocam alguma coisa.
Alguma coisa quase existe. Os olhos. As tuas mãos que acariciam
as margens do percurso. Mãos e olhos fora do tempo. Só muito depois te digo:
essas palavras já foram minhas. Já foram palavras. Desejo
medo. Talvez sobretudo sombra. Muito depois ainda percebo a
natureza dessa sombra: sombra das tuas mãos sombra dos teus olhos. É inverso a tudo esse
visível percurso. Só ele é divino. O inverso da vertigem.
Muito obrigada. |