NÃO NOS LIXEM | NÚMERO 4 - JANEIRO/FEVEREIRO 1996 |
Amândio Pereira
O estuário do Sado é um ecossistema único na sua diversidade em fauna e flora existentes, identificado como um dos poucos locais onde ainda existem populações residentes de golfinhos. Infelizmente, é também uma área bastante martirizada, devido aos graves problemas de poluição existentes. A mais recente ameaça são as dragagens, de enorme envergadura, que se pretende fazer, com as suas nefastas consequências na vida estuarina, e não só. Este artigo, é um levantamento dos principais aspectos que poderão ocorrer se as pretendidas inovações ao porto de Setúbal forem efectuadas.
A Administração dos Portos de Setúbal e Sesimbra (APSS) pretende lançar um Concurso Público Internacional, no âmbito da União Europeia, para as obras de Dragagens e a construção do Terminal de Contentores no Porto de Setúbal, tendo sido elaborado para o efeito, um Estudo de Impacte Ambiental (EIA).
Com a implementação do Projecto, orçamentado em cerca de 13 milhões de contos, pretende-se dotar o Porto de Setúbal de um cais acostável apto a receber navios porta-contentores com grande capacidade de carga (tipo "over panamax").
A acessibilidade marítima ao Terminal será garantida através do aprofundamento do Canal da Barra (linha de separação entre o oceano e o rio Sado), e do Canal Norte (região norte do estuário, ao longo da costa, onde encontra-se a cidade e zona industrial de Setúbal) e da Bacia de Rotação (usada para a rotação de navios), numa largura de cerca de 180 m.
As dragagens deverão ser realizadas, em princípio, por uma draga de sucção em marcha (dragagem hidráulica) que carrega no porão os inertes dragados. As dragagens a realizar serão da ordem dos 14 milhões de m3, sendo o volume diário médio a dragar cerca de 30.000 m3/dia e decorrerão durante 16 meses - 7 dias por semana, 24 horas por dia.
Os sedimentos dragados serão utilizados para aterros destinados à construção do Terminal, estimando-se que sejam necessários cerca de 2 milhões de m3. Quanto aos dragados excedentes - os restantes 12 milhões de m3 - serão utilizados para a criação de outros aterros, tendo em vista uma futura expansão do Porto de Setúbal, designadamente na Península da Mitrena, bem como a sua utilização no enchimento das Praias de Sesimbra.
A constituição de depósitos e aterros de dragados irá prejudicar irremediavelmente a fauna e flora estuarinas, isto porque além de afectar a qualidade da água e dos sedimentos, provocará a destruição de áreas subditais e interditais, especialmente zonas de sapal que existem na península da Mitrena, que são a vanguarda do ecossistema do Estuário do Sado, junto à Reserva Natural do Estuário do Sado.
A ressuspensão dos sedimentos irá afectar o ciclo biológico das várias espécies que coabitam no estuário, o que por sua vez, irá prejudicar todos aqueles que usam esses recursos naturais como meio de subsistência, nomeadamente a piscicultura e a pesca fluvial.
Alteração de cor e aumento dos sólidos em suspensão
resultantes das dragagens e da deposição
de aterros e enrocamentos, onde é de esperar, no caso dos sedimentos
dragados, modificações nos
teores de matéria orgânica e a presença de substâncias
tóxicas;
Contaminação da água e dos sedimentos, provocada
pelos trabalhos de dragagem, resultante
da ressuspensão de sedimentos contendo metais pesados, dando
origem à formação de
organometálicos e à sua posterior deposição
em zonas não contaminadas (ou menos
contaminadas);
Agravamento da qualidade bacteriológica da água, provocada
pelos trabalhos de dragagem,
resultante da ressuspensão de populações bacterianas
existentes nas camadas superficiais de
sedimentos.
É de salientar também, que o estudo considera o valor comercial médio para as areias dragadas da ordem dos 500$00/m3, ascendendo assim, o valor dos 12 milhões de m3 a cerca de 6 milhões de contos, o que, considerando bem a situação, é um caso em que o brilho dos lucros poderá sobrepor-se ao perigo que as areias dragadas acarretam.
Contrariamente ao que está a acontecer noutras cidades portuárias, onde tenta-se colmatar as consequências nefastas de um aumento de poluição e também de marginalidade (ex.: tráfico de droga e prostituição), em campanhas "devolver o rio à cidade", estas obras vão contrariar totalmente esta ideia, criando irremediavelmente um muro de divisão entre a cidade e o rio.
Criam-se também condições ideais para indústrias altamente poluentes como as petroquímicas, instalarem-se na região, das quais destaca-se a criação da Expo 98 e o consequente despejo das indústrias que se encontram à beira do Tejo. Existe a ameaça real da vinda dessas indústrias para a região as quais muito contribuíram para a degradação da vida ambiental no Estuário do Tejo, sendo também muito pouco empregadoras de mão-de-obra, devido à sua sofisticação industrial, pelo que as contrapartidas seriam negativas.
Com o ecossistema do rio Sado, nefastamente alterado, pondo em causa toda a vida estuarina, as actividades como a pesca fluvial, a piscicultura, o turismo balnear, entre outras, serão afectadas, onde a destruição dos espólios arqueológicos submarinos existentes irá impedir um maior conhecimento cultural e patrimonial da região, sem que haja nenhuma contrapartida suficiente para remediar esta situação. A afectação de milhares de postos de trabalho que directa ou indirectamente vivem e dependem do Estuário do Sado, não é compensada pelos confusos e pouco conclusivos índices do estudo económico, muito primário e sem conteúdos sólidos para o futuro da região, pelo que corremos o risco de ter outro "elefante branco" económico na região, com toda a consequente irreversibilidade ambiental.
Este projecto tende a contrariar a disposição natural
de um Porto de características fluviais
para uma obra de características oceânicas, com todos
os graves problemas ambientais e
sócio-económicos dai resultantes;
As dragagens pelo seu volume, extensão e profundidade irão
provocar alterações na
configuração local dos fundos do estuário, com
possíveis repercussões nos regimes de erosão,
sedimentação e trânsito aluvinar;
Também as populações da fauna e flora estuarina
existentes nos locais de dragagem serão
bastante afectadas pela acção mecânica das dragas,
assim como os ruídos provocados nas áreas
de acção das dragagens;
O aumento da matéria em suspensão na água e,
portanto, da turbidez provoca, por diminuição
luminosa, uma diminuição da fotossíntese que irá
prejudicar toda a cadeia alimentar;
A dispersão dos sedimentos ressuspensos conduz uma redistribuição
dos agentes tóxicos ou
patogénicos que se encontram depositados nas zonas dragadas,
afectando zonas eventualmente
não contaminadas ou menos contaminadas, conduzindo a perturbações
no ciclo biológico das
espécies que coabitam no Estuário do Sado;
Os depósitos e aterros de dragados, irão destruir as
zonas de sapal que se encontram nas áreas
de intervenção do projecto, as quais, apesar do seu estado
ambiental, ainda poderão ser
recuperadas;
Se estas obras avançarem iremos perder o grande símbolo
da região, que são os golfinhos, pelo
que teremos de o substituir pela tainha, espécie que desenvolve-se
bastante bem em regiões
fluviais altamente poluídas...
Qualidade da água e dos SedimentosA qualidade da água no estuário do Sado, mais especificamente no Canal Norte, denota sérios efeitos da poluição provocada pelas descargas, sem qualquer tipo de tratamento, dos resíduos industriais e urbanos de Setúbal, lançados durante dezenas de anos para o leito do Rio.
Análises feitas em 1993 e 1994, resultantes de dragagens de menor envergadura, dá-nos uma certa ideia dos fenómenos que ocorrem. Desta forma, os parâmetros de qualidade da água analisados foram os seguintes: sólidos suspensos totais, carência bioquímica de oxigénio, carência química de oxigénio, fósforo, azoto amoniacal, azoto Kjedahl, nitratos, nitritos, bifenilos policlorados, coliformes totais e coliformes fecais. Estas análises confirmam a deficiente qualidade da água do estuário, em particular do seu Canal Norte. Os sedimentos, relativamente às áreas a dragar, encontram-se poluídos, e no canal norte, juntos à cidade e zona industrial de Setúbal, detectam-se teores elevados de metais pesados, tais como o cádmio, cobre, crómio, mercúrio e zinco. Os equipamentos e processos de trabalho a utilizar nas dragagens e na deposição dos materiais dragados, afectam uma área do estuário do Sado que apresenta níveis deficientes de qualidade da água e dos sedimentos, provocando um aumento considerável de sólidos e elementos tóxicos em suspensão (por exemplo, sólidos suspensos totais, carência bioquímica de oxigénio e carência química de oxigénio, no caso da água; e metais pesados, especialmente mercúrio, crómio e cádmio, no caso dos sedimentos). |
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