| COMUNICAÇÃO | SETÚBAL, 19 DE FEVEREIRO DE 2000 |
Boa tarde a todos.
Gostaria por começar abordando o problema dos resíduos perigosos -- um pouco aliás em resposta à afirmação recente do Ministro José Sócrates de que: «todos atacam as soluções e ninguém liga ao problema» -- e dessa forma tentar vos mostrar porque é que, nos moldes em que é proposta, a queima destes resíduos (antes por incineração dedicada, e agora por co-incineração em cimenteiras) não só não é solução, como pode impedir mesmo a implementação de soluções sustentáveis, e ambientalmente adequadas (que existem! e para uma parte muito significativa dos resíduos actualmente propostos para queima, a sua adopção é não só possível a curto prazo como também economicamente viável, ao contrário do que é tantas vezes insinuado e afirmado!).
O problema dos resíduos perigosos em Portugal é reconhecidamente grave, não só pela sua produção desregrada, como também pelos inaceitáveis destinos que lhes têm sido dados.
São várias as razões que levam ao aparecimento deste tipo de resíduos. As mais importantes são: o uso de produtos com compostos químicos perigosos -- como por exemplo os feitos com o plástico PVC --; o uso de processos de fabrico «sujos», onde por razões de processo se utilizam esses compostos -- esse é o caso do fabrico de cloro recorrendo a um processo de electrólise com células de mercúrio (de tão má, e justificada, fama desde Minimata) --; e por fim, parece-me também significativo o problema da ineficiência nos processos de fabrico (motivando o aparecimento de mais resíduos do que o que seria estritamente necessário se o processo fosse minimamente optimizado).
De entre os muitos tipos de compostos tóxicos (não só em resíduos mas também nas emissões para a atmosfera e nos efluentes líquidos), há um grupo em particular, que nos deve merecer a máxima importância e prioridade, que é o dos chamados compostos tóxicos persistentes no meio ambiente. Para este tipo de compostos, a tão [ab]usada máxima de que a dose faz o veneno (aplicável obviamente a muitos compostos), perde muita da sua força e razão de ser, já que a acumulação destes compostos nos seres vivos, e o efeito da bio-magnificação (concentrações crescentes à medida que se sobe na cadeia alimentar), tornam pouco aceitável e defensável a adopção de doses «aceitáveis». De entre estes compostos encontramos inúmeros organoclorados, como as dioxinas, furanos e PCB's; os compostos orgânicos de mercúrio; e muitos outros.
Podemos de uma forma simplificada identificar duas posturas opostas no que aos resíduos perigosos diz respeito. A primeira -- a que chamaria de conformista -- encara o aparecimento deste tipo de resíduos como inevitável (ou até uma inacreditável medida de desenvolvimento), levando os seus seguidores a estudarem o problema a jusante da sua produção, recaindo invariável e prioritariamente nas chamadas medidas fim-de-linha como a queima e o uso de aterros. A segunda -- preventiva e claramente ambientalista -- questiona o seu aparecimento, e dá primazia absoluta à sua prevenção e redução na fonte, opondo-se fortemente à adopção a médio e longo prazo de destinos fim-de-linha, e propondo que se incentive e promova a escolha de produtos e processos de fabrico [mais] limpos.
Ao contrário do que se possa pensar, existem alternativas economicamente viáveis (desde que a concorrência seja minimamente justa) para uma parte muito significativa dos actuais produtos de consumo «tóxicos», e dos actuais processos de fabrico «tóxicos», por produtos e processos de fabrico [mais] limpos! Por exemplo, para a grande maioria das utilizações dos chamados solventes orgânicos -- como é o caso das tintas -- existe a alternativa de produtos cujo solvente é a água (este é um problema particularmente grave de entre os muitos gerados pelos resíduos perigosos, porque a grande maioria dos solventes orgânicos são extremamente tóxicos, e muito voláteis [passam facilmente ao estado gasoso], pelo que uma determinada quantidade de um resíduo deste tipo, implica que já houve anteriormente uma libertação significativa directa do mesmo para o meio ambiente, ou a emissão de compostos tóxicos persistentes [halogenados se o solvente também o for] na sua queima nas chaminés das fábricas).
Os ambientalistas tendem também a achar aceitável e minimamente sustentável, que se adopte o fecho de ciclos, para com os resíduos perigosos (reutilização, e reciclagem material). Sendo este destino algo discutível para com os resíduos que têm atrás de si libertações significativas de poluentes tóxicos e persistentes para o meio ambiente -- como é o caso da grande maioria dos solventes orgânicos --, ele é inquestionavelmente preferível à sua queima ou envio para aterro.
Neste momento, muitos de vós -- pelo menos os que ainda não estão a dormir -- estarão certamente a pensar: «isso é tudo muito lindo, mas que fazer perante o problema imediato e urgente dos resíduos perigosos que existem e que estão actualmente a ser produzidos (e que não o deixarão de ser no curto prazo)?»
Bom. Toda esta teoria parece-me fundamental para que se compreenda porque é que a actual «estratégia» é errada e não trará os resultados pretendidos a médio e longo prazo.
Senão vejamos. A actual estratégia do actual Governo (aliás, herdada no essencial dos anteriores), assenta na implementação prioritária de medidas fim-de-linha (embora se esteja a «assobiar para o ar» no que aos aterros de resíduos perigosos diz respeito), na sua viabilização a longo prazo (pelo menos vinte anos para a co-incineração como vem no Estudo de Impacte Ambiental), e no seu licenciamento não pela origem de cada resíduo, mas sim pelas suas características físico-químicas.
Se a primeira até pode ser compreensível para alguns dos resíduos perigosos, quando conjugada com a segunda e terceira, torna-se um erro crasso e grave.
Situações urgentes requerem medidas excepcionais urgentes, nunca medidas «normais» e permanentes. Sendo verdade que é preferível que se dê um destino fim-de-linha a uma resíduo perigoso, em vez de este ser despejado selvaticamente no meio ambiente, isso não deve servir de justificação para que os resíduos perigosos que o não estão a ser (certamente a grande maioria dos produzidos pelas industrias que a SCORECO já admite como futuros clientes) sejam para aí destinados. O risco desta situação, que podemos aliás verificar um pouco por todo o mundo, é os destinos fim-de-linha autorizados e licenciados a longo prazo, serem eles próprios a razão de ser para a continuação da produção desses resíduos (para quê mudar de processos de fabrico, se existe um destino a longo prazo, e se a própria entidade fiscalizadora -- o Governo -- incentiva, licencia e promove esse destino?).
Outro erro gravíssimo da actual estratégia para com os resíduos perigosos assenta, na quase total demissão do Governo quanto à sua função fiscalizadora (usando até um argumento perverso, que é o de não fiscalizar as indústrias por ele próprio não arranjar um destino fim-de-linha para os resíduos dessas indústrias. Quão interessante seria se a mesma táctica fosse adoptada na tributação dos impostos! Não era?). Parece-me evidente que actualmente uma indústria minimamente civilizada já tem, se quiser, um destino fim-de-linha para os seus resíduos (embora talvez com um custo maior), como também é evidente que com facilidade o Governo criaria na proximidade dos grandes produtores unidades de armazenamento temporário adequadas para a grande maioria desses resíduos (dando tempo e não impedindo que as coisas se fizessem como deve ser), ou mesmo incentivando o aparecimento de mais unidades de inertização físico-química dos resíduos mais críticos para posterior deposição em aterros.
Sem uma fiscalização actuante e sistemática, nunca o problema dos despejos selvagens será resolvido, já que o actual custo para quem os faz, é ZERO (o que é, convenhamos, um pouco menos do que os trinta contos por tonelada da co-incineração...).
É incompreensível que nada tenha sido feito para responsabilizar as 98% das indústrias que em 1999, pura e simplesmente, não entregaram a declaração anual obrigatória de produção deste tipo de resíduos (se as respectivas multas tivessem sido aplicadas, o Estado teria arrecadado qualquer coisa como 30 milhões de contos, para além de o mesmo dificilmente vir a repetir-se este ano, como provavelmente irá acontecer). Mais, só com uma resposta significativa destas indústrias se poderá passar a ter um inventário minimamente credível da produção e origem destes resíduos, logo os dados mínimos para que se possa estudar uma estratégia adequada a mais longo prazo para com o problema.
É também incompreensível que não tenha havido até agora nenhuma resposta à medida de fiscalização proposta da QUERCUS, que para além de ser relativamente barata, permitia fazer de cada cidadão e associação de defesa do ambiente, um fiscal do ambiente, o que certamente faria pensar duas vezes as industrias que sistematicamente despejam os seus resíduos perigosos sem nenhum cuidado (geralmente à sexta-feira ou durante o fim-de-semana).
Embora sabendo que irão continuar as acusações de que os opositores da co-incineração não propõem soluções e só atacam as propostas, para além das eternas insinuações de que têm outros interesses obscuros (até porque caiem bem no ouvido dos menos atentos a estas questões, e servem de «justificação» para que os «responsáveis» do Governo e da Administração não falem do tal problema), aqui vão elas resumidamente uma vez mais:
Legislar, e principalmente implementar o acesso fácil à
informação (produção de resíduos e emissões, por fábrica);
Reforçar a fiscalização, e implementar o telefone
SOS-Ambiente a funcionar 24 horas por dia e 365[6] dias por
ano, com meia dúzia de equipas adequadamente equipadas para
num curto espaço de tempo poder recolher amostras no
local do crime (do seguimento do processo deveria ser
obrigatório dar conhecimento ao cidadão ou à entidade
que fez a denúncia);
Separar clara e inequivocamente as medidas urgentes a
implementar a curto-prazo, mas com um curto tempo de vida, da
necessária estratégia a médio e longo prazo (para que esta não
seja condicionada pelas primeiras);
Licenciar resíduo-a-resíduo, e indústria-a-indústria,
um destino seguindo as prioridades definidas na legislação,
para esses resíduos. Eventuais destinos fim-de-linha (devidamente
justificados) deverão ter sempre um prazo reduzido (para que
a indústria deixe de produzir esse resíduo, ou arranje um destino
ambientalmente adequado);
Incentivar -- com instrumentos económicos (fiscais ou outros), com
fiscalizações apertadas, ou actuando nos licenciamentos industriais
-- a Prevenção/Redução (produção [mais] limpa), e o fecho de ciclos
(Reutilização ou Reciclagem material), dos resíduos perigosos (a curto
prazo isto já é possível para os óleos usados e os solventes orgânicos
propostos para queima);
Inventariar as fontes e quantidades de resíduos perigosos
produzidos no país;
Definir uma estratégia com medidas concretas, objectivos e
prazos definidos para com os vários tipos e origens dos resíduos
perigosos a implementar, no mínimo, a médio prazo.
Como é evidente, todo este problema dos resíduos industriais está intimamente ligado ao problema da poluição das industrias, e como tal deveria ser encarado de uma forma mais integrada (até porque é tecnicamente possível transferir poluição entre os vários meios: resíduos para poluição atmosférica, etc.). Muito há a dizer sobre este aspecto, mas deixá-lo-ei para o debate caso o queiram abordar.
Duas notas finais, que não são de todo irrelevantes para com este problema. A primeira é de que é inaceitável que em muitos documentos públicos de divulgação produzidos pelos responsáveis políticos ou técnico-administrativos nesta área, se refira como obrigatória a queima de uma parte dos resíduos perigosos (levando quem não está minimamente dentro deste problema a pensar que a queima de resíduos é a solução e tem mesmo de ser feita algures). A isto chama-se desinformação! O facto de pela legislação ser proibido o envio de certos tipos de resíduos directamente para aterros (por razões fáceis de compreender) não significa a obrigatoriedade de envio para queima! As alternativas não são só estas, e esta desonestidade técnico-política tem de ser denunciada e combatida.
Por fim gostaria de veementemente contrariar a ideia (errada) de que a queima de resíduos não produz poluição tóxica, e é ambientalmente sustentável. Não se conhecem nem metade dos compostos emitidos pela queima de resíduos (quaisquer que eles sejam, desde que sejam variados). Dos que se conhecem é reconhecida a elevadíssima perigosidade de uma parte destes (dioxinas, PCB's, compostos de mercúrio, etc.) e que parte destes são extremamente persistentes no meio-ambiente. Só se controla uma mínima parte destes compostos nas chaminés, sendo a amostragem quase irrelevante para os compostos medidos descontinuamente (dioxinas e metais pesados). Não se conhecem os efeitos na saúde, da grande maioria desses compostos, e quase nada de eventuais efeitos sinérgicos. Do que se conhece, por exemplo no caso das dioxinas, só as 80 mg que cumprindo a Lei as cimenteiras estarão autorizadas a emitir por ano, dariam -- caso fossem totalmente assimiladas por humanos -- para que, segundo os actuais valores recomendados pela Organização Mundial da Saúde, 50 mil pessoas recebessem a máxima dose «aceitável» de dioxinas para todo o seu tempo de vida (5 milhões, usando os valores propostos no maior estudo alguma vez feito sobre estas pela, Agência do Ambiente Americana - EPA).
Será que tudo isto é não querer encarar o problema e só atacar as ditas «soluções»? Deixo a resposta para cada um de vós.
Muito obrigado.
Miguel Oliveira e Silva (mos at ua.pt)
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