SOBERANIA DO POVO, 22 de Abril de 2005

 

Memórias de pedra e barro desde dois milénios antes de Cristo
Estação Arqueológica do Cabeço do Vouga



Na freguesia de Lamas do Vouga localiza-se uma das mais prestigiadas estações arqueológicas não só do distrito de Aveiro como da vasta região do Entre Douro e Mondego, a Estação Arqueológica do Cabeço do Vouga. Implantada sobranceiramente a um meandro do rio Vouga, na sua margem esquerda, distribui-se por duas plataformas de desigual altitude e área, num espaço que engloba cerca de seis hectares - cerca de 2 no Cabeço da Mina e cerca de 4 no Cabeço Redondo.
 

Referida desde os finais do séc. XIX, pelos eruditos locais, dada a existência de materiais arqueológicos abundantes na superfície dos dois terraços/plataformas, só nos anos 40 do século XX viria a merecer um interesse acrescido que motivaria uma pioneira intervenção arqueológica, da responsabilidade do Dr. Rocha Madahil e com o apoio financeiro de Sousa Bapptista, também este um erudito local, amante da sua terra e da sua história.

Ocupação humana remonta ao II milénio antes de Cristo
Pese embora o empenho e o interesse relevado por aqueles trabalhos arqueológicos, pioneiros no concelho de Águeda, aquela intervenção acabaria por não ter a continuidade que os seus autores tinham previsto; contudo, a imponência das ruínas postas a descoberto e os materiais arqueológicos recolhidos, levaria a que as mesmas, e todo o seu aro, fossem classificadas em 1947, como Imóvel de Interesse Público.

* TALÁBRIGA: Apesar da importância indiscutível do arqueosítio, o mesmo irá conhecer um abandono e/ou mesmo esquecimento durante as décadas seguintes: plantios e semeaduras indiscriminadas de espécies arbóreas, a par de pisoteamentos frequentes enquanto áreas de pastagem, devassaram as ruínas transformando-as em "ruínas de ruínas", embora no imaginário popular o sítio, continuasse a ser referenciada como o local onde num passado longínquo (no tempo dos "Mouros") se teriam desenrolado cenas trágicas num quadro mais vasto da conquista romana - a Talábriga de Plínio - ou a existência quotidiana de uma grande cidade “luso-romana" - Vacca (designação latina retirada do topónimo "rio Vouga", que lhe corre no sopé e que constituiu então a grande via fluvial das relações socio-económicas das regiões do interior, na sua ligação ao litoral atlântico).

Porém, apesar da sua importância arqueológica e patrimonial, só nos anos 60 é que o local, na plataforma menor, conhecida como Cabeço da Mina, designação tomada a partir da existência de uma "mina" ou poço, na realidade uma cisterna de águas pluviais – viria a conhecer uma intervenção arqueológica de cariz mais científico, sob a direcção de um professor coimbrão, o Or, Mário de Castro Hipólito, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.

Este investigador universitário efectuou algumas sondagens arqueológicas - de cuja informação se perdeu o rasto, assim como dos materiais recolhidos - mas, preocupou-se de forma significativa com a preservação do sítio arqueológico, quer consolidando as estruturas postas a descoberto nos anos 40 como as arquitecturas que as suas escavações trouxeram à luz do dia. Teve ainda a preocupação meritória de, junto do então Executivo Municipal e através dos Edifícios e Monumentos Nacionais, promover a protecção geral das ruínas, tarefa essa que não levou a bom termo dada a pouca sensibilidade da época para o património arqueológico.

* PATRIMÓNIO ÚNICO: Pese embora o empenho, o interesse e, de certo modo, a curiosidade por um património arqueológico único no distrito de Aveiro, teriam que decorrer mais cerca de 40 anos para que, finalmente, o sítio arqueológico do Cabeço do Vouga, no espaço orográfico conhecido como sítio da Mina (ou Cabeço da Mina), visse finalmente a luz e ocupasse o lugar que muito justamente ocupa no panorama da arqueologia nacional e mesmo de além fronteiras. Registe-se que, actualmente, a Estação Arqueológica do Cabeço do Vouga, pelo empenho, a todos os títulos exemplar, da Câmara Municipal de Águeda, pelo desempenho dos qualificados investigadores que ali trabalham diariamente e que têm simultaneamente promovido a divulgação contínua e merecedora de elogios vários em diferentes reuniões, congressos e seminários, constitui um forte candidato a Património da Humanidade, no quadro consensual dos Castros do Noroeste Peninsular.

Os modernos estudos, iniciados em 1996 e em curso de realização, permitem hoje ter uma visão mais objectiva, até porque cientificamente comprovada, da importância real de um sítio arqueológico como o Cabeço da Mina - vulgarmente referido como sítio da Mina. Este arqueosítio detém uma ocupação humana que remonta ao II milénio antes de Cristo, altura em que populações dominando a tecnologia do bronze se estabeleceram no local. Desta primeira ocupação humana e que actualmente só se identifica nos níveis mais profundos dos sedimentos terrosos - entre 1,50 e os cerca de 2 metros de profundidade -ficaram-nos vestígios de cabanas em barro amassado e utensílios vários como artefactos em pedra talhada e pedra polida, moinhos manuais e cerâmica comum, de uso doméstico, com carenas vincadas e tratamento polido nas superfícies externas dos recipientes. É, contudo, na Idade do Ferro e no período romano que os vestígios arqueológicos são mais significativos e, actualmente mais visíveis, dadas as características construtivas e os materiais utilizados na protourbanização do espaço orográfico.

* PRÉ-ROMANOS: Enquadráveis na Idade do Ferro possuem-se edifícios - alicerces - de planta circular, oblonga e rectangular, em aparelho construtivo diferenciado, a par de uma utensilagem de uso doméstico quer em cerâmicas de fabrico manual, assim como a torno lento e mesmo a molde, este herdado e/ou intercambiado do mundo mediterrânico, a par de elementos de adorno em pastas de vidro policromo - as conhecidas contas oculadas.

Vários objectos enquadráveis nesta época, que acabará por se eclipsar com a influência fundamental do mundo romano, no ocaso do século II a. C., retratam-nos ainda as vivências pré-industriais destas populações pré-romanas, como sejam a os pesos de rede, para a pesca e/ou tecelagem, os moinhos manuais para a moagem de gramíneas, ou ainda os cadinhos para a funrdição de metais, etc.

Com a influência romana tudo se foi alterando ao longo dos seis/sete séculos de aculturação: as construções e seus aparelhos pétreos alteraram-se, os revestimentos dos interiores dos edifícios e suas coberturas passaram a utilizar telhas e ladrilhos em barro, as redes comerciais ultrapassaram os limites ancestrais do povoado, donde toda uma parafernália de objectos até então desconhecidos: a par de cerâmicas comuns de mesa e de cozinha de fabrico manual e a torno, surgem as cerâmicas de importação como as sigillatae (recipientes de luxo), as anforae (ânforas, contentores em barro para vinho, azeite e pescado), elementos de adorno mais sofisticados em vidro, metal (bronze), em ouro, assim como o uso da moeda se torna generalizado. Todas estas alterações estão bem demarcadas no sítio da Mina, onde mesmo as construções romanas nos falam de um faseamento cronológico com reflexos culturais de peso na população vivente.

* CABEÇO DA MINA: A primeira ocupação romana do sítio enquadra-se em época augustal, ou seja no século I da nossa era; data desta altura a construção dos primeiros edifícios de planta rectangular, o reaproveitamento e/ou desmantelamento das construções pre-existentes e, acima de tudo, o erguer da grande plataforma artificial que "coroa" grande parte do Cabeço da Mina. Esta construção em típico aparelho romano constitui, na realidade, não uma fortaleza e/ou muralha mas, uma grande obra de engenharia romana com o objectivo de regularizar o desnível que o terreno apresentava, constitui de certo modo, um criptopórtico mas, sem pórtico, enquadrável em construções como encontramos na Aeminium romana (Coimbra).

Entre os séculos II e IV da nossa era, a partir do aparelho construtivo e dos numismas identificados, assiste-se a um programa arquitectónico de grande pujança: e que passará pelo reforço da plataforma principal, junto da parede poente, com a construção de dois conjuntos estruturais de reforço da mesma: um muro de supote duplamente pilastrado e um conjunto de construções ocas, semicirculares, adossadas à face interior do muro poente da plataforma augustal. Tais construções visaram o objectivo único de reforçar a parede poente que deveria estar, por esta época, a sofrer pressões excessivas dada a altura da plataforma artificial existente e respectivas construções. É também por esta altura que se terá erguido um templo "intramuros" , como os vestígios de estatuária em mármore encontrados, assim o documentam. Toda a ocupação deste sítio arqueológico único ter-se-á extinguido, paulatinamente, entre o século VI e VII da nossa era, dado que nada autoriza - assim o confirmam até à data os vestígios arqueológicos - a existência de conflitos internos e/ou de proveniência exterior ao povoado, mesmo nas épocas mais antigas da sua criação e desenvolvimento. Bem pelo contrário, exceptuando-se um "pequeno" hiato no tempo que medeia entre a ocupação do final da Idade do Bronze e a ocupação da Idade do Ferro, toda a vivência das populações pré-romanas e romanas se pautou por uma convivialidade sem sobressaltos de maior - a par de cerâmicas de fabrico indígena do século I a.C. / I d. C., encontra-se olaria romana: de fabrico a torno, entre outros exemplos - de tal modo que nada ficou arquivado no registo arqueológico.

* ARQUEOLOGIA: Toda a leitura cronológico-cultural que hoje já começa a ser possível fazer-se deste sítio arqueológico no Baixo Vouga e na freguesia de Lamas do Vouga, constitui apenas uma das vertentes, sem dúvida a mais significativa, porque científica, mas não a única.

Outras vertentes, que não menores, têm sido e continuam a ser consideradas como sejam as da valorização e da divulgação. Nestes dois domínios, o Gabinete de Arqueologia da Câmara Municipal de Águeda tem apostado fortemente, contando para isso com todo o apoio municipal. Daí que, nos últimos anos, significativas obras quer de conservação e restauro das estruturas existentes, como de musealização do sítio e áreas adjacentes, constituam hoje uma mais valia patrimonial não só para a freguesia e concomitantemente para o concelho de Águeda mas também para toda a região.
FERNANDO SILVA (Gabinete de História e Arqueologia da Câmara Municipal de Águeda)



Jóia da coroa
 

A estação arqueológica do Cabeço do Vouga é um local aprazível, com equipamentos mínimos que permitem a qualquer visitante integrar-se numa paisagem cultural sem paralelos conhecidos.

Sem eufemismos consabidos, a Estação Arqueológica do Cabeço do Vouga é, sem qualquer dúvida, a "jóia da coroa" do concelho de Águeda, um cartão de visita a quem o visite, um exemplo do que uma autarquia que zela as suas raízes ancestrais é capaz de fazer, com os meios limitados de que dispõe, sem recorrer a pastiches, a cópias, a "ilusões", a imagens virtuais de passados ilusórios e/ou de interpretação dúbia - a Estação Arqueológica do Cabeço do Vouga está finalmente viva e de boa saúde, aberta a todos aqueles que queiram e/ou possam visitá-la!
 

É obviamente, um convite!

Uma viagem agradável pelos tempos da nossa, então ainda, não História.

Rumemos, pois, ao Entre Vouga e Marnel, desfrutemos uma paisagem cultural e também ela natural, onde a nossa memória se apaga perante o acumular dos milénios e dos séculos; ouçamos as memórias de pedra, os registos do barro, os risos e sorrisos de todos aqueles que durante cinco milénios foram os senhores destas terras e nos legaram um passado feito presente sempre pela vontade dos homens e das mulheres que se transmutaram naquilo que hoje somos e sem os quais o passado constituiria sempre um "ending", um fim em si mesmo, um não retorno. FERNANDO SILVA