JORNAL DE NOTÍCIAS, 05/01/2005
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LEITOR
HISTÓRIA LOCAL MALTRATADA (*) NA "HISTÓRIA DAS FREGUESIAS E CONCELHOS DE PORTUGAL"
Nas últimas décadas, e um pouco por todo o país, têm-se registado avanços significativos no conhecimento da história local, fruto do interesse de investigadores amadores e profissionais. O interesse do público neste tema também cresceu. Recentemente, o Jornal de Notícias começou a distribuir [distribui] aos Domingos uma História das Freguesias e Concelhos de Portugal, em 20 volumes. Com este título, esperaríamos encontrar uma obra conscienciosa, baseada na literatura mais actualizada sobre cada freguesia e concelho.
No primeiro volume, está uma introdução histórica da autoria do tão popular quanto eloquente historiador José Hermano Saraiva, o mesmo que dá a cara na publicidade que tem vindo a ser feita. Saraiva, por muitas e boas razões, merece a admiração dos portugueses. Neste caso, todavia, teria sido melhor para a sua imagem não dar cobertura a esta iniciativa. É que a referida “obra” é pura banha-da-cobra para leitores desprevenidos.
Desde logo, tratando-se de uma história das freguesias e concelhos, esperaríamos que a história de cada concelho e de cada freguesia fosse apresentada, ainda que resumidamente. Para cada concelho, é, de facto, apresentada uma descrição, típicamente de uma página, com alguns dados geográficos, estatísticos e, também, históricos. Para as freguesias, o mesmo não acontece. O que encontramos na descrição das freguesias é uma descrição de pequenas curiosidades locais, muitas vezes lendárias e/ou não representativas. Para muitas freguesias, a descrição chega a meia página. Para muitas outras, não passa de um parágrafo.
No entanto, só percebemos verdadeiramente como esta “obra” é imprópria para consumo ao lermos aquilo que nela se diz sobre localidades que conhecemos bem. Vamos a exemplos. No volume 1, aparece Águeda, que os autores dizem ser referida antigamente pelo nome de Anegia, o que não tem qualquer fundamento. Anegia ficava junto ao Douro. Diz-se que as inquirições de 1282 referem a existência de uma cavalariça de Dom Dinis em Águeda. Céus! Não era uma “cavalariça”, mas sim uma cavalaria, ou seja, um casal pertencente a um cavaleiro. E não era em Águeda, pela simples razão de que as ditas inquirições não referem a aldeia de Águeda. Passemos às freguesias. Agadão, Belazaima, Borralha e até terras tão antigas e historicamente relevantes como Espinhel e Recardães não merecem mais do que um parágrafo cada uma. E, em nenhum desses casos, o parágrafo é sobre a história, mas sim sobre a respectiva igreja paroquial ou sobre outro pormenor ainda mais banal.
Passemos ao Volume 2 onde se fala de Anadia, sendo referidas duas explicações para o topónimo Anadia, ambas lendárias e sem fundamento, não sendo referida a etimologia que os especialistas lhe atribuem. Diz-se que a elevação de Anadia a vila foi fruto da influência da família Sá e Melo (que viriam a ser Condes de Anadia), afirmação que não tem qualquer fundamento histórico. Anadia foi vila desde a idade média. Diz-se que os Condes de Anadia têm um sumptuoso palácio, sendo o leitor incauto induzido a pensar que o palácio fica em Anadia. Na verdade, é em Mangualde! Diz-se que Anadia foi elevada a sede de concelho em 1839, o que também é incorrecto. A concessão do foral em 1514 implica já a existência ou a criação do concelho. No século XIX, o concelho esteve extinto por alguns anos, mas voltou a existir a partir de 1836. Em quase todas as freguesias se fala da respectiva igreja paroquial. No entanto, quando tratam de Sangalhos, que tem a mais importante igreja da Bairrada, nada dizem sobre ela. Em Sangalhos preferem falar de uma suposta lenda dos selamins, que não é lenda nenhuma, sendo, sim, uma hipótese de explicação do topónimo Sangalhos proposta por um historiógrafo do século XIX. À casa que o Conde de São Joaquim, um rico brasileiro de torna-viagem, construiu no local de uma antiga casa da família Castilho chamam Casa dos Castilhos. Dizem que a casa da câmara de Aguim é medieval, outra afirmação sem fundamento histórico. Dizem que o Paço de Óis do Bairro foi mandado construir em 1799, quando, na verdade, foi construido no século XVII e ampliado nos séculos XVIII e XIX. Em 1799 foi apenas realizado um tombo do prazo de Óis. No Palácio da Graciosa, destacam o aproveitamento, numa ala construida em finais do século XIX, de pedras românicas e renascentistas provenientes de Coimbra. No entanto, essa ala já não existe há mais de 30 anos e as pedras já lá não estão.
Isto são apenas pequenos exemplos. A “obra” está cheia de banalidades (e provavelmente muitos mais erros) e quase nenhuma História. É evidente que os autores se limitaram a consultar corografias do século XIX e monografias locais ultrapassadas, compilando informações de forma acrítica e leviana.
Luís Seabra Lopes
AVEIRO
( * ) Apenas o texto sublinhado foi publicado no jornal. Texto acrescentado pelo JN aparece entre [ ].