- O discurso perante a Real Academia Sueca
 
 
 
- DE COMO A PERSONAGEM FOI MESTRE
      
- E O AUTOR SEU APRENDIZ
 
 Por JOSÉ SARAMAGO
 
- Terça-feira, 8 de Dezembro
      de 1998
-  
 O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida
      não sabia ler nem escrever. Às quatro da
      madrugada, quando a promessa de um novo dia ainda vinha em
      terras de França, levantava-se da enxerga e saía
      para o campo, levando ao pasto a meia dúzia de porcas de
      cuja fertilidade se alimentavam ele e a mulher. Viviam desta
      escassez os meus avós maternos, da pequena
      criação de porcos que, depois do desmame, eram
      vendidos aos vizinhos da aldeia. Azinhaga de seu nome, na
      província do Ribatejo. Chamavam-se Jerónimo
      Melrinho e Josefa Caixinha esses avós, e eram
      analfabetos um e outro. No Inverno, quando o frio da noite
      apertava ao ponto de a água dos cântaros gelar
      dentro da casa, iam buscar às pocilgas os bácoros
      mais débeis e levavam-nos para a sua cama. Debaixo das
      mantas grosseiras, o calor dos humanos livrava os animaizinhos
      do enregelamento e salvava-os de uma morte certa. Ainda que
      fossem gente de bom carácter, não era por
      primores de alma compassiva que os dois velhos assim procediam:
      o que os preocupava, sem sentimentalismos nem retóricas,
      era proteger o seu ganha-pão, com a naturalidade de
      quem, para manter a vida, não aprendeu a pensar mais do
      que o indispensável. Ajudei muitas vezes este meu
      avô Jerónimo nas suas andanças de pastor,
      cavei muitas vezes a terra do quintal anexo à casa e
      cortei lenha para o lume, muitas vezes, dando voltas e voltas
      à grande roda de ferro que accionava a bomba, fiz subir
      a água do poço comunitário e a transportei
      ao ombro, muitas vezes, às escondidas dos guardas das
      searas, fui com a minha avó, também pela
      madrugada, munidos de ancinho, panal e corda, a recolher nos
      restolhos a palha solta que depois haveria de servir para a
      cama do gado. E algumas vezes, em noites quentes de
      Verão, depois da ceia, meu avô me disse:
      "José, hoje vamos dormir os dois debaixo da figueira".
      Havia outras duas figueiras, mas aquela, certamente por ser a
      maior, por ser a mais antiga, por ser a de sempre, era, para
      toda as pessoas da casa, a figueira. Mais ou menos por
      antonomásia, palavra erudita que só muitos anos
      depois viria a conhecer e a saber o que significava
 No
      meio da paz nocturna, entre os ramos altos da árvore,
      uma estrela aparecia-me, e depois, lentamente, escondia-se por
      trás de uma folha, e, olhando eu noutra
      direcção, tal como um rio correndo em
      silêncio pelo céu côncavo, surgia a
      claridade opalescente da Via Láctea, o Caminho de
      Santiago, como ainda lhe chamávamos na aldeia. Enquanto
      o sono não chegava, a noite povoava-se com as
      histórias e os casos que o meu avô ia contando:
      lendas, aparições, assombros, episódios
      singulares, mortes antigas, zaragatas de pau e pedra, palavras
      de antepassados, um incansável rumor de memórias
      que me mantinha desperto, ao mesmo tempo que suavemente me
      acalentava. Nunca pude saber se ele se calava quando se
      apercebia de que eu tinha adormecido, ou se continuava a falar
      para não deixar em meio a resposta à pergunta que
      invariavelmente lhe fazia nas pausas mais demoradas que ele
      calculadamente metia no relato: "E depois?". Talvez repetisse
      as histórias para si próprio, quer fosse para
      não as esquecer, quer fosse para as enriquecer com
      peripécias novas. Naquela idade minha e naquele tempo de
      nós todos, nem será preciso dizer que eu
      imaginava que o meu avô Jerónimo era senhor de
      toda a ciência do mundo. Quando, à primeira luz da
      manhã, o canto dos pássaros me despertava, ele
      já não estava ali, tinha saído para o
      campo com os seus animais, deixando-me a dormir. Então
      levantava-me, dobrava a manta e, descalço (na aldeia
      andei sempre descalço até aos 14 anos), ainda com
      palhas agarradas ao cabelo, passava da parte cultivada do
      quintal para a outra onde se encontravam as pocilgas, ao lado
      da casa. Minha avó, já a pé antes do meu
      avô, punha-me na frente uma grande tigela de café
      com pedaços de pão e perguntava-me se tinha
      dormido bem. Se eu lhe contava algum mau sonho nascido das
      histórias do avô, ela sempre me tranquilizava:
      "Não faças caso, em sonhos não há
      firmeza". Pensava então que a minha avó, embora
      fosse também uma mulher muito sábia, não
      alcançava as alturas do meu avô, esse que, deitado
      debaixo da figueira, tendo ao lado o neto José, era
      capaz de pôr o universo em movimento apenas com duas
      palavras. Foi só muitos anos depois, quando o meu
      avô já se tinha ido deste mundo e eu era um homem
      feito, que vim a compreender que a avó, afinal,
      também acreditava em sonhos. Outra coisa não
      poderia significar que, estando ela sentada, uma noite,
      à porta da sua pobre casa, onde então vivia
      sozinha, a olhar as estrelas maiores e menores por cima da sua
      cabeça, tivesse dito estas palavras: "O mundo é
      tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer". Não
      disse medo de morrer, disse pena de morrer, como se a vida de
      pesado e contínuo trabalho que tinha sido a sua
      estivesse, naquele momento quase final, a receber a
      graça de uma suprema e derradeira despedida, a
      consolação da beleza revelada. Estava sentada
      à porta de uma casa como não creio que tenha
      havido alguma outra no mundo porque nela viveu gente capaz de
      dormir com porcos como se fossem os seus próprias
      filhos, gente que tinha pena de ir-se da vida só porque
      o mundo era bonito, gente, e este foi o meu avô
      Jerónimo, pastor e contador de histórias, que, ao
      pressentir que a morte o vinha buscar, foi despedir-se das
      árvores do seu quintal, uma por uma, abraçando-se
      a elas e chorando porque sabia que não as tornaria a
      ver.
 
 Muitos anos depois, escrevendo pela primeira vez sobre este meu
      avô Jerónimo e esta minha avó Josefa
      (faltou-me dizer que ela tinha sido, não dizer de
      quantos a conheceram quando rapariga, de uma formosura
      invulgar), tive consciência de que estava a transformar
      as pessoas comuns que eles haviam sido em personagens
      literárias e que essa era, provavelmente, a maneira de
      não os esquecer, desenhando e tornando a desenhar os
      seus rostos com o lápis sempre cambiante da
      recordação, colorindo e iluminando a monotonia de
      um quotidiano baço e sem horizontes, como quem vai
      recriando, por cima do instável mapa da memória,
      a irrealidade sobrenatural do país em que decidiu passar
      a viver. A mesma atitude de espírito que, depois de
      haver evocado a fascinante e enigmática figura de um
      certo bisavô berbere, me levaria a descrever mais ou
      menos nestes termos um velho retrato (hoje já com quase
      oitenta anos) onde os meus pais aparecem: "Estão os dois
      de pé, belos e jovens, de frente para o
      fotógrafo, mostrando no rosto uma expressão de
      solene gravidade que é talvez temor diante da
      câmara, no instante em que a objectiva vai fixar, de um e
      de outro, a imagem que nunca mais tornarão a ter, porque
      o dia seguinte será implacavelmente outro dia
      Minha mãe apoia o cotovelo direito numa alta coluna e
      segura na mão esquerda, caída ao longo do corpo,
      uma flor. Meu pai passa o braço por trás das
      costas de minha mãe e a sua mão calosa aparece
      sobre o ombro dela como uma asa. Ambos pisam acanhados um
      tapete de ramagens. A tela que serve de fundo postiço ao
      retrato mostra umas difusas e incongruentes arquitecturas
      neoclássicas". E terminava: "Um dia tinha de chegar em
      que contaria estas coisas. Nada disto tem importância, a
      não ser para mim. Um avô berbere, vindo do Norte
      de África, um outro avô pastor de porcos, uma
      avó maravilhosamente bela, uns pais graves e formosos,
      uma flor num retrato - que outra genealogia pode importar-me? a
      que melhor árvore me encontraria?"
 
 Escrevi estas palavras há quase trinta anos, sem outra
      intenção que não fosse reconstituir e
      registar instantes da vida das pessoas que me geraram e que
      mais perto de mim estiveram, pensando que nada mais precisaria
      de explicar para que se soubesse de onde venho e de que
      materiais se fez a pessoa que comecei por ser e esta em que
      pouco a pouco me vim tornando. Afinal, estava enganado, a
      biologia não determina tudo, e, quanto à
      genética, muito misteriosos deverão ter sido os
      seus caminhos para terem dado uma volta tão larga
      À minha árvore genealógica
      (perdôe-se-me a presunção de a designar
      assim, sendo tão minguada a substância da sua
      seiva) não faltavam apenas alguns daqueles ramos que o
      tempo e os sucessivos encontros da vida vão fazendo
      romper do tronco central, também lhe faltava quem
      ajudasse as suas raízes a penetrar até às
      camadas subterrâneas mais fundas, quem apurasse a
      consistência e o sabor dos seus frutos, quem ampliasse e
      robustecesse a sua copa para fazer dela abrigo de aves
      migrantes e amparo de ninhos. Ao pintar os meus pais e os meus
      avós com tintas de literatura, transformando-os, de
      simples pessoas de carne e osso que haviam sido, em personagens
      novamente e de outro modo construtoras da minha vida, estava,
      sem o perceber, a traçar o caminho por onde as
      personagens que viesse a inventar, as outras, as efectivamente
      literárias, iriam fabricar e trazer-me os materiais e as
      ferramentas que, finalmente, no bom e no menos bom, no bastante
      e no insuficiente, no ganho e no perdido, naquilo que é
      defeito mas também naquilo que é excesso,
      acabariam por fazer de mim a pessoa em que hoje me
      reconheço: criador dessas personagens, mas, ao mesmo
      tempo, criatura delas. Em certo sentido poder-se-á mesmo
      dizer que, letra a letra, palavra a palavra, página a
      página, livro a livro, tenho vindo, sucessivamente, a
      implantar no homem que fui as personagens que criei. Creio que,
      sem elas, não seria a pessoa que hoje sou, sem elas
      talvez a minha vida não tivesse logrado ser mais do que
      um esboço impreciso, uma promessa como tantas outras que
      de promessa não conseguiram passar, a existência
      de alguém que talvez pudesse ter sido e afinal
      não tinha chegado a ser.
 
 Agora sou capaz de ver com clareza quem foram os meus mestres
      de vida, os que mais intensamente me ensinaram o duro
      ofício de viver, essas dezenas de personagens de romance
      e de teatro que neste momento vejo desfilar diante dos meus
      olhos, esses homens e essas mulheres feitos de papel e tinta,
      essa gente que eu acreditava ir guiando de acordo com as minhas
      conveniências de narrador e obedecendo à minha
      vontade de autor, como títeres articulados cujas
      acções não pudessem ter mais efeito em mim
      que o peso suportado e a tensão dos fios com que os
      movia. Desses mestres, o primeiro foi, sem dúvida, um
      medíocre pintor de retratos que designei simplesmente
      pela letra H., protagonista de uma história a que creio
      razoável chamar de dupla iniciação (a
      dele, mas também, de algum modo, do autor do livro),
      intitulada "Manual de Pintura e Caligrafia", que me ensinou a
      honradez elementar de reconhecer e acatar, sem ressentimento
      nem frustração, os meus próprios limites:
      não podendo nem ambicionando aventurar-me para
      além do meu pequeno terreno de cultivo, restava-me a
      possibilidade de escavar para o fundo, para baixo, na
      direcção das raízes. As minhas, mas
      também as do mundo, se podia permitir-me uma
      ambição tão desmedida. Não me
      compete a mim, claro está, avaliar o mérito do
      resultado dos esforços feitos, mas creio ser hoje
      patente que todo o meu trabalho, de aí para diante,
      obedeceu a esse propósito e a esse princípio.
 
 Vieram depois os homens e as mulheres do Alentejo, aquela mesma
      irmandade de condenados da terra a que pertenceram o meu
      avô Jerónimo e a minha avó Josefa,
      camponeses rudes obrigados a alugar a força dos
      braços a troco de um salário e de
      condições de trabalho que só mereceriam o
      nome de infames, cobrando por menos que nada a vida a que os
      seres cultos e civilizados que nos prezamos de ser apreciamos
      chamar, segundo as ocasiões, preciosa, sagrada ou
      sublime. Gente popular que conheci, enganada por uma Igreja
      tão cúmplice como beneficiária do poder do
      Estado e dos terratenentes latifundistas, gente permanentemente
      vigiada pela policia, gente, quantas e quantas vezes,
      vítima inocente das arbitrariedades de uma
      justiça falsa. Três gerações de uma
      família de camponeses, os Mau-Tempo, desde o
      começo do século até a
      Revolução de Abril de 1974 que derrubou a
      ditadura, passam nesse romance a que dei o título de
      "Levantado do Chão", e foi com tais homens e mulheres do
      chão levantados, pessoas reais primeiro, figuras de
      ficção depois, que aprendi a ser paciente, a
      confiar e a entregar-me ao tempo, a esse tempo que
      simultaneamente nos vai construindo e destruindo para de novo
      nos construir e outra vez nos destruir. Só não
      tenho a certeza de haver assimilado de maneira
      satisfatória aquilo que a dureza das experiências
      tornou virtude nessas mulheres e nesses homens: uma atitude
      naturalmente estóica perante a vida. Tendo em conta,
      porém, que a lição recebida, passados mais
      de vinte anos, ainda permanece intacta na minha memória,
      que todos os dias a sinto presente no meu espírito como
      uma insistente convocatória, não perdi,
      até agora, a esperança de me vir a tornar um
      pouco mais merecedor da grandeza dos exemplos de dignidade que
      me foram propostos na imensidão das planícies do
      Alentejo. O tempo o dirá.
 
 Que outras lições poderia eu receber de um
      português que viveu no século XVI que compôs
      as "Rimas" e as glórias, os naufrágios e os
      desencantos pátrios de "Os Lusíadas", que foi um
      génio poético absoluto, o maior da nossa
      literatura, por muito que isso pese a Fernando Pessoa, que a si
      mesmo se proclamou como o Super-Camões dela? Nenhuma
      lição que estivesse à minha medida,
      nenhuma lição que eu fosse capaz de aprender,
      salvo a mais simples que me poderia ser oferecida pelo homem
      Luís Vaz de Camões na sua estreme humanidade, por
      exemplo, a humildade orgulhosa de um autor que vai chamando a
      todas as portas à procura de quem esteja disposto a
      publicar-lhe o livro que escreveu, sofrendo por isso o desprezo
      dos ignorantes de sangue e de casta, a indiferença
      desdenhosa de um rei e da sua companhia de poderosos, o
      escárnio com que desde sempre o mundo tem recebido a
      visita dos poetas, dos visionários e dos loucos. Ao
      menos uma vez na vida todos os autores tiveram ou terão
      de ser Luís de Camões, mesmo se não
      escreverem as redondilhas de "Sôbolos rios"
 Entre
      fidalgos da corte e censores do Santo Ofício, entre os
      amores de antanho e as desilusões da velhice prematura,
      entre a dor de escrever e a alegria de ter escrito, foi a este
      homem doente que regressa pobre da Índia, aonde muitos
      só iam para enriquecer, foi a este soldado cego de um
      olho e golpeado na alma, foi a este sedutor sem fortuna que
      não voltará nunca mais a pertubar os sentidos das
      damas do paço, que eu pus a viver no palco da
      peça teatro chamada "Que farei com este livro?", em cujo
      final ecoa uma outra pergunta, aquela que importa
      verdadeiramente, aquela que nunca saberemos se alguma vez
      chegará a ter resposta suficiente: "Que fareis com este
      livro?". Humildade orgulhosa, foi essa de levar debaixo do
      braço uma obra-prima e ver-se injustamente enjeitado
      pelo mundo. Humildade orgulhosa também, e obstinada,
      esta de querer saber para que irão servir amanhã
      os livros que andamos a escrever hoje, e logo duvidar que
      consigam perdurar longamente (até quando?) as
      razões tranquilizadoras que acaso nos estejam a ser
      dadas ou que estejamos a dar a nós próprios.
      Ninguém melhor se engana que quando consente que o
      enganem os outros
 
 Aproximam-se agora um homem que deixou a mão esquerda na
      guerra e uma mulher que veio ao mundo com o misterioso poder de
      ver o que há por trás da pele das pessoas. Ele
      chama-se Baltasar Mateus e tem a alcunha de Sete-Sóis, a
      ela conhecem-na pelo nome de Blimunda, e também pelo
      apodo de Sete-Luas que lhe foi acrescentado depois, porque
      está escrito que onde haja um sol terá de haver
      uma lua, e que só a presença conjunta e
      harmoniosa de um e do outro tornará habitável,
      pelo amor, a terra. Aproxima-se também um padre
      jesuíta chamado Bartolomeu que inventou uma
      máquina capaz de subir ao céu e voar sem outro
      combustível que não seja a vontade humana, essa
      que, segundo se vem dizendo, tudo pode, mas que não
      pôde, ou não soube, ou não quis, até
      hoje, ser o sol e a lua da simples bondade ou do ainda mais
      simples respeito. São três loucos portugueses do
      século XVIII, num tempo e num país onde
      floresceram as superstições e as fogueiras da
      Inquisição, onde a vaidade e a megalomania de um
      rei fizeram erguer um convento, um palácio e uma
      basílica que haveriam de assombrar o mundo exterior, no
      caso pouco provável de esse mundo ter olhos bastantes
      para ver Portugal, tal como sabemos que os tinha Blimunda para
      ver o que escondido estava
 E também se aproxima
      uma multidão de milhares e milhares de homens com as
      mãos sujas e calosas, com o corpo exausto de haver
      levantado, durante anos a fio, pedra a pedra, os muros
      implacáveis do convento, as salas enormes do
      palácio, as colunas e as pilastras, as aéreas
      torres sineiras, a cúpula da basílica suspensa
      sobre o vazio. Os sons que estamos a ouvir são do cravo
      de Domenico Scarlatti, que não sabe se deve rir ou
      chorar
 Esta é a história de "Memorial do
      Convento", um livro em que o aprendiz de autor, graças
      ao que lhe vinha sendo ensinado desde o antigo tempo dos seus
      avós Jerónimo e Josefa, já conseguiu
      escrever palavras como estas, donde não está
      ausente alguma poesia: "Além da conversa das mulheres,
      são os sonhos que seguram o mundo na sua órbita.
      Mas são também os sonhos que lhe fazem uma coroa
      de luas, por isso o céu é o resplendor que
      há dentro da cabeça dos homens, se não
      é a cabeça dos homens o próprio e
      único céu". Que assim seja.
 
 De lições de poesia sabia já alguma coisa
      o adolescente, aprendidas nos seus livros de texto quando, numa
      escola de ensino profissional de Lisboa, andava a preparar-se
      para o ofício que exerceu no começo da sua vida
      de trabalho: o de serralheiro mecânico. Teve
      também bons mestres de arte poética nas longas
      horas nocturnas que passou em bibliotecas públicas,
      lendo ao acaso de encontros e de catálogos, sem
      orientação, sem alguém que o aconselhasse
      com o mesmo assombro criador do navegante que vai inventando
      cada lugar que descobre. Mas foi na biblioteca da escola
      industrial que "O Ano da Morte de Ricardo Reis" começou
      a ser escrito
 Ali encontrou um dia o jovem aprendiz de
      serralheiro (teria então 17 anos) uma revista - "Atena"
      era o título - em que havia poemas assinados com aquele
      nome e, naturalmente, sendo tão mau conhecedor da
      cartografia literária do seu país pensou que
      existia em Portugal um poeta que se chamava assim: Ricardo
      Reis. Não tardou muito tempo, porém, a saber que
      o poeta propriamente dito tinha sido um tal Fernando Nogueira
      Pessoa que assinava poemas com nomes de poetas inexistentes
      nascidos na sua cabeça e a que chamava
      heterónimos, palavra que não constava dos
      dicionários da época, por isso custou tanto
      trabalho ao aprendiz de letras saber o que ela significava.
      Aprendeu de cor muitos poemas de Ricardo Reis ("Para ser grande
      sê inteiro/Põe quanto és no mínimo
      que fazes"), mas não podia resignar-se, apesar de
      tão novo e ignorante, que um espírito superior
      tivesse podido conceber, sem remorso este verso cruel:
      "Sábio é o que se contenta com o
      espectáculo do mundo". Muito, muito tempo depois, o
      aprendiz, já de cabelos brancos e um pouco mais
      sábio das suas próprias sabedorias, atreveu-se a
      escrever um romance para mostrar ao poeta das "Odes" alguma
      coisa do que era o espectáculo do mundo nesse ano de
      1936 em que o tinha posto a viver os seus últimos dias:
      a ocupação da Renânia pelo exército
      nazista, a guerra de Franco contra a República
      espanhola, a criação por Salazar das
      milícias fascistas portuguesas. Foi como se estivesse a
      dizer-lhe: "Eis o espectáculo do mundo, meu poeta das
      amarguras serenas e do cepticismo elegante. Disfruta, goza,
      comtempla, já que estar sentado é a tua
      sabedoria
"
 
 "O Ano da Morte de Ricardo Reis" terminava com umas palavras
      melancólicas: "Aqui, onde o mar se acabou e a terra
      espera". Portanto, não haveria mais descobrimentos para
      Portugal, apenas como destino uma espera infinita de futuros
      nem aos menos inimagináveis: só o fado do
      costume, a saudade de sempre, e pouco mais
 Foi
      então que o aprendiz imaginou que talvez houvesse ainda
      uma maneira de tornar a lançar os barcos à
      água, por exemplo, mover a própria terra e
      pô-la a navegar pelo mar fora. Fruto imediato do
      ressentimento colectivo português pelos desdéns
      históricos de Europa (mais exacto seria dizer fruto de
      um meu ressentimento pessoal
), o romance que então
      escrevi - "Jangada de Pedra" - separou do continente europeu
      toda a Península Ibérica para a transformar numa
      grande ilha flutuante, movendo-se sem remos, nem velas, nem
      hélices em direcção ao Sul do mundo,
      "massa de pedra e terra, coberta de cidades, aldeias, rios,
      bosques, fábricas, matos bravios, campos cultivados, com
      a sua gente e os seus animais", a caminho de uma utopia nova: o
      encontro cultural dos povos peninsulares com os povos do outro
      lado do Atlântico, desafiando assim, a tanto a minha
      estratégia se atreveu, o domínio sufocante que os
      Estados Unidos da América do Norte vêm exercendo
      naquelas paragens
 Uma visão duas vezes
      utópica entenderia esta ficção
      política como uma metáfora muito mais
      géneros e humana: que a Europa, toda ela, deverá
      deslocar-se para o Sul, a fim de, em desconto dos seus abusos
      colonialistas antigos e modernos, ajudar a equilibrar o mundo.
      Isto é, Europa finalmente como ética. As
      personagens da "Jangada de Pedra" - duas mulheres , três
      homens e um cão - viajam incansavelmente através
      da península enquanto ela vai sulcando o oceano. O mundo
      está a mudar e eles sabem que devem procurar em si
      mesmos as pessoas novas em que irão tornar-se (sem
      esquecer o cão, que não é um cão
      como os outros
). Isso lhes basta.
 
 Lembrou-se então o aprendiz de que em tempos da sua vida
      havia feito algumas revisões de provas de livros e que
      se na "Jangada de Pedra" tinha, por assim dizer, revisado o
      futuro, não estaria mal que revisasse agora o passado,
      inventando um romance que se chamaria "História do Cerco
      de Lisboa", no qual um revisor, revendo um livro do mesmo
      título, mas de História, e cansado de ver como a
      dita História cada vez é menos capaz de
      surpreender, decide pôr no lugar de um "sim" um
      "não", subvertendo a autoridade das "verdades
      históricas". Raimundo Silva, assim se chama o revisor,
      é um homem simples, vulgar, que só se distingue
      da maioria por acreditar que todas as coisas têm o seu
      lado visível e o seu lado invisível e que
      não saberemos nada delas enquanto não lhes
      tivermos dado a volta completa. De isso precisamente se trata
      numa conversa que ele tem com o historiador. Assim:
      "Recordo-lhe que os revisores já viram muito de
      literatura e vida, O meu livro, recordo-lhe eu, é de
      história, Não sendo propósito meu apontar
      outras contradições, senhor doutor, em minha
      opinião tudo quanto não for vida é
      literatura, A história também. A história
      sobretudo, sem querer ofender, E a pintura, e a música,
      A música anda a resistir desde que nasceu, ora vai, ora
      vem, quer livrar-se da palavra, suponho que por inveja, mas
      regressa sempre à obediência, E a pintura, Ora, a
      pintura não é mais do que literatura feita com
      pincéis, Espero que não esteja esquecido de que a
      humanidade começou a pintar muito antes de saber
      escrever, Conhece o rifão, se não tens cão
      caça com o gato, ou, por outras palavras, quem
      não pode escrever, pinta, ou desenha, é o que
      fazem as crianças, O que você quer dizer, por
      outras palavras, é que a literatura já existia
      antes de ter nascido, Sim senhor, como o homem, por outras
      palavras, antes de o ser já o era, Quer-me parecer que
      você errou a vocação, devia era ser
      historiador, Falta-me o preparo, senhor doutor, que pode um
      simples homem fazer sem o preparo, muita sorte já foi
      ter vindo ao mundo com a genética arrumada, mas, por
      assim dizer, em estado bruto, e depois não mais
      polimento que primeiras letras que ficaram únicas, Podia
      apresentar-se como autodidacta, produto do seu próprio e
      digno esforço, não é vergonha nenhuma,
      antigamente a sociedade tinha orgulho nos seus autodidactas,
      Isso acabou, veio o desenvolvimento e acabou, os autodidactas
      são vistos com maus olhos, só os que escrevem
      versos e histórias para distrair é que
      estão autorizados a ser autodidactas, mas eu para a
      criação literária nunca tive jeito,
      Então, meta-se a filósofo, O senhor doutor
      é um humorista, cultiva a ironia, chego a perguntar-me
      como se dedicou à história, sendo ela tão
      grave e profunda ciência, Sou irónico apenas na
      vida real, Bem me queria a mim parecer que a história
      não é a vida real, literatura, sim, e nada mais,
      Mas a história foi vida real no tempo em que ainda
      não se lhe poderia chamar história, Então
      o senhor doutor acha que a história e a vida real, Acho,
      sim, Que a história foi vida real, quero dizer,
      Não tenho a menor dúvida, Que seria de nós
      se o deleatur que tudo apaga não existisse, suspirou o
      revisor". Escusado será acrescentar que o aprendiz
      aprendeu com Raimundo Silva a lição da
      dúvida. Já não era sem tempo.
 
 Ora, foi provavelmente esta aprendizagem da dúvida que o
      levou, dois anos mais tarde, a escrever "O Evangelho segundo
      Jesus Cristo". É certo, e ele tem-no dito, que as
      palavras do título lhe surgiram por efeito de uma
      ilusão de óptica, mas é legítimo
      interrogar-nos se não teria sido o sereno exemplo do
      revisor o que, nesse meio tempo, lhe andou a preparar o terreno
      de onde haveria de brotar o novo romance. Desta vez não
      se tratava de olhar por trás das páginas do "Novo
      Testamento" à procura de contrários, mas sim de
      iluminar com uma luz rasante a superfície delas, como se
      faz a uma pintura, de modo a fazer-lhe ressaltar os relevos, os
      sinais de passagem, a obscuridade das depressões. Foi
      assim que o aprendiz, agora rodeado de personagens
      evangélicas, leu, como se fosse a primeira vez, a
      descrição da matança dos Inocentes, e,
      tendo lido, não compreendeu. Não compreendeu que
      já pudesse haver mártires numa religião
      que ainda teria de esperar trinta anos para que o seu fundador
      pronunciasse a primeira palavra dela, não compreendeu
      que não tivesse salvado a vida das crianças de
      Belém precisamente a única pessoa que o poderia
      ter feito, não compreendeu a ausência, em
      José, de um sentimento mínimo de
      responsabilidade, de remorso, de culpa, ou sequer de
      curiosidade, depois de voltar do Egipto com a família.
      Nem se poderá argumentar, em defesa da causa, que foi
      necessário que as crianças de Belém
      morressem para que pudesse salvar-se a vida de Jesus: o simples
      senso comum, que a todas as coisas, tanto às humanas
      como às divinas, deveria presidir, aí está
      para nos recordar que Deus não enviaria o seu Filho
      à terra, de mais a mais com o encargo de redimir os
      pecados da humanidade, para que ele viesse a morrer aos dois
      anos de idade degolado por um soldado de Herodes
 Nesse
      "Evangelho", escrito pelo aprendiz com o respeito que merecem
      os grandes dramas, José será consciente da sua
      culpa, aceitará o remorso em castigo da falta que
      cometeu e deixar-se-á levar à morte quase sem
      resistência, como se isso lhe faltasse ainda para
      liquidar as suas contas com o mundo. O "Evangelho" do aprendiz
      não é, portanto, mais uma lenda edificante de
      bem-aventurados e de deuses, mas a história de uns
      quantos seres humanos sujeitos a um poder contra o qual lutam,
      mas que não podem vencer. Jesus, que herdará as
      sandálias com que o pai tinha pisado o pó dos
      caminhos da terra, também herdará dele o
      sentimento trágico da responsabilidade e da culpa que
      nunca mais o abandonará, nem mesmo quando levantar a voz
      do alto da cruz: "Homens, perdoai-lhe porque ele não
      sabe o que fez", por certo referindo-se ao Deus que o levara
      até ali, mas quem sabe se recordando ainda, nessa agonia
      derradeira, o seu pai autêntico, aquele que, na carne e
      no sangue, humanamente o gerara. Como se vê, o aprendiz
      já tinha feito uma larga viagem quando no seu
      herético "Evangelho" escreveu as últimas palavras
      do diálogo no templo entre Jesus e o escriba: "A culpa
      é um lobo que come o filho depois de ter devorado o pai,
      disse o escriba, Esse lobo de que falas já comeu o meu
      pai, disse Jesus, Então só falta que te devore a
      ti, E tu, na tua vida, foste comido, ou devorado, Não
      apenas comido e devorado, mas vomitado, respondeu o
      escriba".
 
 Se o imperador Carlos Magno não tivesse estabelecido no
      Norte da Alemanha um mosteiro, se esse mosteiro não
      tivesse dado origem à cidade de Münster, se
      Münster não tivesse querido assinalar os mil e
      duzentos anos da sua fundação com uma
      ópera sobre a pavorosa guerra que enfrentou no
      século XVI protestantes anabaptistas e católicos,
      o aprendiz não teria escrito a peça de teatro a
      que chamou "In Nomine Dei". Uma vez mais, sem outro
      auxílio que a pequena luz da sua razão, o
      aprendiz teve de penetrar no obscuro labirinto das
      crenças religiosas, essas que com tanta facilidade levam
      os seres humanos a matar e a deixar-se matar. E o que viu foi
      novamente a máscara horrenda da intolerância, uma
      intolerância que em Münster atingiu o paroxismo
      demencial, uma intolerância que insultava a
      própria causa que ambas as partes proclamavam defender.
      Porque não se tratava de uma guerra em nome de dois
      deuses inimigos, mas de uma guerra em nome de um mesmo deus.
      Cegos pelas suas próprias crenças, os
      anabaptistas e os católicos de Münster não
      foram capazes de compreender a mais clara de todas as
      evidências: no dia do Juízo Final, quando uns e
      outros se apresentarem a receber o prémio ou o castigo
      que mereceram as suas acções na terra, Deus, se
      em suas decisões se rege por algo parecido à
      lógica humana, terá de receber no paraíso
      tanto a uns como aos outros, pela simples razão de que
      uns e outros nele crêem. A terrível carnificina de
      Münster ensinou ao aprendiz que, ao contrário do
      que prometeram, as religiões nunca serviram para
      aproximar os homens, e que a mais absurda de todas as guerras
      é uma guerra religiosa, tendo em
      consideração que Deus não pode, ainda que
      o quisesse, declarar guerra a si próprio
 
 Cegos. O aprendiz pensou: "Estamos cegos", e sentou-se a
      escrever o "Ensaio sobre a Cegueira" para recordar a quem o
      viesse a ler que usamos perversamente a razão quando
      humilhamos a vida, que a dignidade do ser humano é todos
      os dias insultada pelos poderosos do nosso mundo, que a mentira
      universal tomou o lugar das verdades plurais, que o homem
      deixou de respeitar-se a si mesmo quando perdeu o respeito que
      devia ao seu semelhante. Depois, o aprendiz, como se tentasse
      exorcizar os monstros engendrados pela cegueira da
      razão, pôs-se a escrever a mais simples de todas
      as histórias: uma pessoa que vai à procura de
      outra pessoa apenas porque compreendeu que a vida não
      tem nada mais importante que pedir a um ser humano. O livro
      chama-se "Todos os Nomes". Não escritos, todos os nossos
      nomes estão lá. Os nomes dos vivos e os nomes dos
      mortos.
 
 Termino. A voz que leu estas páginas quis ser o eco das
      vozes conjuntas das minhas personagens. Não tenho, a bem
      dizer, mais voz que a voz que elas tiverem. Perdoai-me se vos
      pareceu pouco isto que para mim é tudo.
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21-Mar-00