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Infinito Singular


 

 

DIÁRIO DE NOTÍCIAS – 15/12/2006

 

O intenso júbilo da singularidade

'Infinito Singular/Sobre o não-literário' é o novo livro de Rui Magalhães. Ensaio iluminante no rasto da obra que o precede nas áreas da Filosofia do Sentido, da Teoria Literária e da Hermenêutica


Ana Marques Gastão

A filosofia está limitada pela ideia de impossibilidade, apesar de desejar ardentemente uma conclusão. Nessa medida, é um sem caminho. Infinito Singular/Sobre o não-literário, de Rui Magalhães (RM) - professor universitário, ensaísta e poeta -, afasta-se do filosófico ao interessar-se pelo não filosófico e da questão literária ao centrar-se no não literário, sabendo que interessa à literatura "tudo o que, sendo literatura, não é literatura". Ao não literário pertence, explica, tudo o que no texto não é texto, mas que a ele se liga: biografia do autor, condições de emergência da escrita.

De que modo poderá o leitor penetrar neste labirinto cujo caminho é enunciado, desde logo, por um paradoxo? Talvez sabendo que a matéria literária está ligada ao mundo e que, não sendo - enquanto experiência de visão e esquecimento exclusivamente literária - acontece também, como sublinha o ensaísta, na "paixão, no intolerável, no sublime".

Entre-se então no livro levantando-se-lhe, por meio da incisão, a pele, tal como o autor aconselha a fazer no processo de separação entre literário e não literário, acedendo-se assim a um corpo-texto sensível de continuidade descontínua, de uma circularidade intensa escrita em espiral e associada a uma obra edificada sob o signo da Filosofia do Sentido, da Hermenêutica e da Teoria da Literatura. Destaque para Post Scriptum. Escritos sobre o Sentido (1996); O Labirinto do Medo: Ana Teresa Pereira, Paixões de Singularidades (ambos de 1999) e Introdução à Hermenêutica (2002).

O ensaio é atravessado pela consciência aguda de que o pensador escreve na experiência-limite do deserto na ameaça do niilismo, com o sentimento crescente da falta de lugar para as palavras. Enquanto homem da filosofia e poeta, RM sabe que este último não tem o "problema" diante de si. Mergulhado no pântano da vida, sem bússola e determinações geográficas ou morais (como no caso da paixão), escreve no não-saber sobre as cinzas do imperceptível, do irrepetível. Entra, desse modo, no espaço da transcendência, da "fulguração de que nasce a alma", materialização daquilo a que o autor chama infinito singular.

O poético nasce, por outro lado, da mudez, porque não lhe está subjacente um discurso pré-determinado, dir-se-ia "silêncio atravessado por uma infinidade de murmúrios que emergem dos constantes combates entre indivíduos e coisas, entre imagens e matérias (não é "a realidade sempre irreal"?), entre sonhos e paredes nuas." Poderá dizer-se, por isso, que a arte se funda num princípio de impotência de onde tudo emerge quando o possível se atenua ou destrói. O não literário existe, para o autor, apenas durante um momento - o infinito singular - condenado ao apagamento, ao desaparecimento. É esse relampejo que há que estudar, segundo RM, na sequência da sua projecção no "texto feito", e que pode e deve ser repetido pela compreensão (e não pela interpretação), iniciada na desolação e na libertação de tudo quanto em nós é idealização.

Ao arrancar o acontecimento à mera representação, o não literário "possibilita-nos a entrada no seu interior" e a experiência do "júbilo da singularidade", explica o escritor. É o infinito singular (ideia-fulgor que incendeia o livro), "essa experiência da não repetição, do carácter absolutamente único de cada coisa que ocorre do outro lado , que a poesia proporciona". Aí anuncia-se a "falsidade" da experiência poética (verdade em relação a si mesma) e a sua falsidade em relação à vida." A matéria literária passa a ser então, de acordo com RM, da ordem de uma ontologia do sentido.

A escrita mais intensa, essa, pode ser definida como tentativa de aproximação daquilo que Rui Magalhães chama voz nua, - criada sobre o corpo infinito -, que nada sabe de si nem da sua origem, reflectindo um afastamento/deslocamento em relação à auto-consciência. Um mundo de singularidades existe, pois, antes e depois da escrita, perante a qual o leitor se posiciona como sujeito apaixonado. Despir a voz nua dir-se-ia "o primordial do amor", a maior cumplicidade entre leitor e autor. Daí a importância que tem neste livro a reflexão sobre a leitura da arte (que nunca lê o livro verdadeiro, sendo um acto imaginativo) e o diálogo entre arte e vida, não sendo esta mais do que um conjunto de imagens.

Rui Magalhães possui a consciência de que não há como evitar escrever sobre o que não sabemos ou sabemos mal. Só nesse ponto imagina poder ter algo a dizer sobre o espaço em branco entre a origem, a obra e o seu destino, exercitando a aprendizagem por meio da repetição do mesmo no eterno retorno tão nietzscheano. E fá-lo a partir desse fio extremo de que Deleuze tão bem falou e que separa o conhecimento da ignorância. É essa a coragem deste iluminante ensaio, escrito sob a ameaça da interrogação insolúvel, a de desconstruir-reconstruir, de religar-reler a partir de todos os ângulos e de todos os fragmentos, não se alheando, desse modo, da "lição" de Derrida.

Escrever a partir de onde e o quê? Onde fica e para onde vai o que escrevemos, onde se tocam as palavras que trocamos? Ler de que modo? Eis algumas das interrogações de Rui Magalhães na totalidade fragmentária de Infinito Singular, ensaio que emerge de um silêncio-ruído carregado de acontecimento, por vezes caótico nas várias circulações do pensar que se entrecruzam, ordenam, desordenam.

Como entrar (ler) (n)este livro? Salvando o texto de alguma da sua natureza abstractizante (a que o conteúdo filosófico obriga); abrindo a sua labiríntica, misteriosa pele, nela reconhecendo uma constelação plural de vitalidade ascendente, baseada num esforço de atenção. Quando parecer que o pensamento tropeça num círculo, saiba-se que é porque tocou em algo de singular, frágil, trágico. Nisso Blanchot tinha razão ao citar Kafka: escrevemos para poder morrer, morremos para poder escrever. Escrevemos também porque estamos vivos.