PÚBLICO, 8 de Março de 1998


Professor de Informática da Universidade de Aveiro sugere nova localização para importante cidade romana


Talábriga, a nova capital do Vouga

Andrea Cunha Freitas

Talábriga. O nome talvez não diga nada à maioria das pessoas. Não é como o nacionalmente conhecido Conímbriga. Mas evoca na mesma a ocupação romana. Talábriga foi a antiga capital romana do Vouga. O que há de novo sobre isto? Há uma nova tese que desloca essa cidade para o concelho de Águeda, quando até agora se encontrava na área de Albergaria-a-Velha. Escavações efectuadas em Águeda parecem ir ao encontro da nova tese. Trata-se do mais recente contributo para esclarecer um dos problemas mais debatidos nos meios da arqueologia portuguesa - a verdadeira localização de Talábriga.
 
A antiga capital romana do Vouga, Talábriga, cuja localização geográfica se discute há cerca de quatro séculos, poderá estar escondida no monte Marnel, mais precisamente no Cabeço do Vouga, no concelho de Águeda. Esta é a tese defendida por Luís Seabra Lopes, um engenheiro de Informática, docente na Universidade de Aveiro, que, com a descoberta de um "erro por defeito nas distâncias dadas pelo "Itinerário de Antonino", uma obra que data do século III, põe em causa a mais recente teoria sobre este assunto, a qual situava o principal centro urbano da região na época romana em Cristeto da Branca, Albergaria-a-Velha. Paralelamente, as escavações efectuadas na estação arqueológica do Cabeço do Vouga, a cargo do Gabinete de História e Arqueologia da autarquia local têm posto a descoberto estruturas e vestígios que podem indicar a mais importante presença romana encontrada entre Coimbra e Gaia.
O problema da localização de Talábriga, apontada como uma das cidades que ofereceram maior resistência aos exércitos de Décimo Bruto em 138 aC. tem sido um dos mais debatidos na arqueologia portuguesa. Em 1561, Gaspar Barreiros foi o primeiro a levantar a hipótese de a localização da cidade romana ser nas imediações de Aveiro, concretamente em Gaia. Só alguns séculos mais tarde, em 1907, esta teoria foi contestada com a definição da "situação conjectural de Talábriga", proposta por Félix Alves Pereira, que corresponderia a Cristelo da Branca, no concelho de Albergaria-a-Velha. Este estudioso baseou-se, essencialmente, nas distâncias indicadas no "Itinerário de Antonino" - obra geográfica que descreve a rede viária de todo o Império Romano, escrita na época de Caracala e concluída em finais de século III -, que situa a antiga capital romana do Vouga a 40 milhas para norte de Emínio (Coimbra) e a 31 milhas para sul de Cale (Porto/Gaia). No entanto, também esta última ideia é agora posta em causa por Luis Seabra Lopes que defende que Talábriga deve ser procurada "no monte e nas areias do Marnel", freguesia de Lamas do Vonga, em Águeda.

Vestígios esquecidos mais de 20 anos

A descoberta de um erro no Itinerário de Antonino e a correcção desse erro através da Geografia de Ptolomeu, a distribuição dos marcos da fronteira e a enumeração corográfica de Plínio são os principais argumentos apresentados por Seabra Lopes para situar Talábriga em Águeda. Localizada a antiga capital romana do Vouga no monte do Marnel, falta, contudo, encontrar as estruturas suficientes para dar consistência à sua tese. Para isso existe, desde 1996, o Gabinete de História e Arqueologia Municipal, com o apoio do Instituto Português do Património Arquitectónico e Arqueológico (Ippar), sob a orientação de Fernando Pereira da Silva, responsável pelas escavações na estação arqueológico do Cabeço do Vouga, que engloba o Cabeço da Mina e o Cabeço Redondo. "Seabra Lopes não descobriu a pólvora, apenas apresenta, pela primeira vez. factos que podem vir a confirmar, juntamente com as futuras descobertas arqueológicas, a localização de Talábriga no Cabeço do Vouga", refere Pereira da Silva.
De facto, a primeira intervenção neste local data de 1941, quando Rocha Madail e Sousa Baptista encontraram no Cabeço da Mina, um dos pontos culminantes do monte, um sistema de muralhas de formato quadrangular que podem representar as ruínas do que poderá ter sido o forum de Talábriga. Por outro lado, na encosta oriental do Cabeço da Mina, prolongando-se até às areias do Marnel, foram descobertos restos de ceramica, grande quantidade de mós manuárias, bem como pedras aparelhadas e capitéis. Aliás, também no ponto culminaute do monte a ocidente, denominado "Cabeço Redondo", foram achados vários restos de construções, alinhadas de sudoeste a nordeste, ao longo de uma rua que ligava duas portas da fortificação.
Depois de mais de 20 anos esquecidos no monte, os vestígios romanos são novamente lembrados em 1966, por Mário de Castro Hipólito que solicita à Câmara Muncipal a vedação da área em questão. No entanto, segundo as actas da época, a autarquia deliberou, "por unanimidade, considerar sem interesse para o concelho o referido recinto arqueológico". Assim, mais uma vez, a estação arqueológica fica adormecida, à mercê dos prejuizos causados pelas condições atmosféricas, pelas crescentes plantações de eucaliptos e pelos "curiosos que vão levando para casa cacos engraçados".
Só em 1996, com a criação do Gabinete de História e Arqueologia, a Câmara de Águeda retomou o interesse pelas ruínas encontradas no Cabeço do Vouga: "Herdámos uma estação que, além de ser geológicamente dura, é extremamente difícil, porque estava completamente desorganizada, reflorestada com eucaliptos e muito degradada" refere Pereira da Silva.


"Ainda há muito a fazer"

Mais interessado na possibilidade de realizar um trabalho contínuo na área, este estudioso considera que o facto de os vestígios encontrados pertencerem à antiga cidade de Talábriga é meramente secundúrio. "Actualmente, existe apenas uma certeza: as estruturas e os vestígios encontrados indicam uma forte presença romana no local, provávelmente a mais importante entre Coimbra e Gaia", afirma. Assim, além de uma grande quantidade de cerâmica comum da época romana, e de alguma cerâmica de luxo, denominada "sigillata", foram ainda encontrados metais, nomeadamente fragmentos de peças trabalhadas em bronze, e vidros.
No entanto, apesar da boa vontade da Câmara Municipal, que recentemente integrou no Plano de Actividades para 1998 uma verba de sete mil contos destinados à compra de terrenos na zona do Cabeço do Vouga, Pereira da Silva refere que "ainda há muito a fazer". "A importância desta estação aqueológica exige, pelo volume e pela dispersão das estruturas, uma equipa permanente e especializada, de forma a criar trabalho de continuidade", afirma Silva que, até agora, apenas pôde contar com duas campanhas de dois meses, realizadas pelos jovens inscritos nas Actividades de Tempos Livres.
Na proposta entregue ao município de Águeda, o responsável pelo Gabinete de Arqueologia solicitou, além da nomeaçao de um técnico auxliar de Arqueologia, a urgente vedação da estação, bem com a cobertura e a recuperação das estruturas descobertas. Assim, de acordo com Pereira da Silva, os primeiros trabalhos que visam a vedação da área - através de uma malha metálica e estacas de madeira - devem avançar ainda este mês. Paralelamente, foi também solicitado ao Centro de Emprego de Águeda uma equipa de cerca de sete pessoas, onde se incluem três pedreiros para trabalhar no local durante seis meses.
Agora, resta esperar a continuação da investigação em Cabeço do Vouga, uma vez que só os resultados desse trabalho poderão definitivamente provar, ou excluir, a hipótese da localização de Talábriga nesse local, defendida por Luís Seabra Lopes.


Os Argumentos de Seabra Lopes

INTERESSE de Seabra Lopes - curiosamente engenheiro informático assistente no Departamento de Electrónica e Telecomunicações da Univeresidade de Aveiro - por esta questão nasceu segundo explica, de um estudo que efectuou em 1994 à 1ocalidade de São João da Azenha, na povoação do Vale do Cértima, em Anadia, onde nasceu. A possibilidade da passagam da estrada mourisca ou estrada real, hoje seguida de perto pela Estrada Nacional nº1, se dar junto a São João da Azenha levou à necessidade de se debruçar sobre o "Itinerário de Antonino" e consequentemente à controversia sobre a localização exacta de Talábriga.
"Julgo ter demonstrado a existência de um erro por defeito, que rondará a dezena de quilómetros, em alguma das distâncias dadas pelo ‘Itinerário de Antonino’", refere Seabra Lopes. Assim, "sendo de 70.5 milhas a distância em linha recta entre Coimbra e Gaia, não poderá estar correcta a distância de 71 milhas atribuida pelo ‘Itinerário’ entre Emínio e Cale, sobretudo quando a distância tradicional por estrada ronda as 78 milhas", explica.Outro dos argumentos utilizados por Lopes é a Geografia de Ptolomeu, do século II, que separa Talábriga de Cale com uma distância de 43 milhas. "É precisamente esta a ditância por estrada, nomeadamente pela antiga estrada real, entre o Marnel e Gaia", afirma. Por outro lado, através da análise da distribuição dos marcos da fronteira e dos marcos miliários encontrados, Luis Seabra Lopes diz ter verificado que o território de Talábriga coincidia em grande parte com a medieval 'terra de Vouga', cuja sede era preciarnente a 'civitas’ Marnel".Finalmente, apoiado na enumeração corográfica de Plínio, que obriga a situar a cidade romana a sul do Vouga, Seabra Lopes exclui definitivamente a hipótese de Félix Alves Pereira, até agora a mais popular. "O sítio arqueológico romano mais importante entre o rio Vouga e Coimbra é o castelo do Marnel, situado no alto de um monte encravado entre os rios Vouga e Marnel", conclui. A.C.F.